Famílias e separações

Por dia, dois casos de alienação parental param no TJMG

No ano passado, foram 909 casos contra 778 de 2021 – um aumento de 17%

Por Aline Diniz
Publicado em 13 de novembro de 2023 | 03:00
 
 
 
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A desavença começa aos poucos. Primeiro vêm os sinais: um dos pais passa a tomar as decisões pelo filho e afasta, sutilmente, o outro guardião. Um dos tutores começa a desconstruir a imagem do outro. A mãe é, muitas vezes, tachada de irresponsável por “abandonar” o lar. O pai passa de herói a monstro por pedir a separação. O extremo dessas situações é quando um dos tutores consegue afastar totalmente o filho ou a filha do outro guardião – casos que ocorrem, principalmente, em meio a divórcios ou dissoluções de uniões estáveis. Na legislação brasileira, o nome dessa quebra de vínculo afetivo é alienação parental, situação que leva uma média de duas pessoas, diariamente, a procurar a Justiça em Minas.

A situação pode acarretar multa, reversão de guarda e outras sanções para a mãe ou para o pai alienador. Segundo dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), nos sete primeiros meses do ano, o órgão recebeu 518 relatos de mães e pais que sentem que o vínculo afetivo com seus filhos foi destruído. Em 2022, foram 909 casos contra 778 de 2021 – um aumento de 17% no período.

A vendedora Ana* entrou para essa estatística há cinco anos, quando pediu a separação. O ex-companheiro não aceitava o fim do relacionamento. “Ele usava meu filho (que hoje tem 14 anos) como moeda de troca. Ameaçava interromper meus dias de visitação, inventava calúnias a meu respeito”, conta. A situação piorou quando ela começou um namoro. “Meu filho tinha medo de desagradar o pai.

Mudou de comportamento, passou a ser violento comigo e chegou a me agredir. Falava que me amava só escondido”, detalha a mãe. Segundo a vendedora, com a ajuda de um primo advogado, o ex conseguiu a guarda unilateral, ou seja, a criança passou a morar unicamente com ele. Por isso, ela precisou entrar com uma ação de alienação parental. A luta pela guarda do filho causou um quadro de depressão que obrigou Ana a procurar ajuda psicológica.

Em julho deste ano, o pai do garoto morreu após sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Atualmente, o menino vive com a família do pai. “Os parentes paternos acreditam que a morte dele (do ex) teve relação com o término da nossa relação. Meu filho está ‘preso’ lá”, conta. A mãe tem uma audiência marcada para os próximos dias e espera provar que nunca abandonou o filho. “Juntei todas as provas (fotos, vídeos e conversas) e vou mostrar que nunca o deixei. A gente sempre foi muito unido. Dobro meus joelhos todos os dias para rezar. Só quero meu filho”, finaliza.

Análise 

Para a advogada Franciele Maria Bianco, que trabalha com direito de família desde 2015, o fenômeno é grave e pode prejudicar o desenvolvimento de crianças e adolescentes, além de colocar
toda a família em sofrimento. “É muito difícil para um pai ou mãe – que está sendo impedido ou impedida de seus direitos parentais – se deparar com um processo judicial em que há alegações até mesmo insanas. O interesse da criança fica de lado para dar espaço a uma série de acusações recíprocas e até mesmo conjugais”, explica a especialista.

Mau uso da lei traz mais sofrimento

A Lei 12.318 de 2010 – da Alienação Parental – vem passando por debates. Há, inclusive, projetos de lei tramitando no Congresso para a extinção da legislação. Para especialistas, a discussão tem relação com o mau uso da lei. Alguns genitores usam a lei em uma “guerra” de narrativas no Judiciário. “O pai acusa a mãe de alienação, e a mulher acusa o homem de abuso. É comum, em processos que envolvem menores, que seja feita uma prova pericial, o que chamamos de “estudo social e/ou psicossocial”, em que será analisado por profissionais nomeados pelo juiz o contexto em que essa criança ou adolescente se encontra. É nesse momento em que há algumas tentativas de manipulação da verdade, e, por isso, é importante que o profissional do direito se atente para não permitir falsas denúncias”, alerta a advogada Franciele Maria Bianco.

Um homem de 48 anos, pai de uma adolescente de 16 anos, conta já ter sofrido com o mau uso da lei. “Chegou ao ponto de a minha filha me denunciar por agressão, usando uma lei importantíssima para as mulheres, que é a Maria da Penha. Só no ano passado, tentaram até me prender algumas vezes”, contou o homem, que luta pelo direito de ser pai na Justiça.

Disputa pode prejudicar desenvolvimento dos filhos

Psicanalista e doutora em direito civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Giselle Groeninga analisa que, em casos de alienação parental, a criança ou o adolescente fica sem a presença e influência de um dos pais, o que pode causar reflexos na formação psíquica da vítima. “O principal problema disso é que um não pode exercer a função dos dois. E o ideal é que a criança tenha o relacionamento com o pai e com a mãe (ou com aqueles que exercem as funções paterna e materna)”, detalha. Por isso, a especialista também em direito de família considera a tipificação de alienação parental importante, já que a legislação prevê uma perícia na qual se avalia toda a situação, a dinâmica e os reflexos que estão sendo causados nas crianças e adolescentes. “Saímos de uma situação de culpado, inocente, vítima e algoz. A avaliação pode, inclusive, sensibilizar a família para o que está acontecendo”.

Avós sofrem com separação

A alienação parental pode ocorrer com outras pessoas da família ou até mesmo com quem não faz parte do núcleo familiar (como babás). O fenômeno é mais comum entre avós. Há aqueles que impedem o contato dos netos com os próprios pais, mas existem também avós que são afastados da convivência com os netos.

“Pode não ser muito falado a respeito, contudo há casos em que a avó materna é quem pratica alienação parental contra a própria filha, principalmente quando se trata de uma mãe jovem e que reside ainda na casa de seus pais. É um problema muito grave no contexto familiar, uma vez que a criança cresce com seus valores e concepções invertidos pela influência constante do ato alienante, que muitas vezes é diário”, exemplifica a advogada Franciele Maria Bianco. Joana*, que é bióloga, considera viver uma situação de alienação em relação aos netos – um menino de 10 anos e uma menina de 12.

As crianças moram com a filha dela em outra cidade. Por anos, a idosa visitou a família. Ela participou dos nascimentos e passava mais de um mês por ano à disposição da filha e das crianças. Com o decorrer do tempo, a filha foi mostrando sinais de distanciamento. Até que, em 2018, na última viagem, a bióloga passou 40 dias na cidade da filha sem poder ver os netos. Ela chegou a ir até a escola das crianças, mas a filha ameaçou chamar a polícia para ela. “Já tentei duas mediações e continuo mandando presentes e cartinhas para uma amiga, que entrega as encomendas para eles. Hoje, vivo sozinha”, desabafa.

Quando o divórcio destrói também laços sanguíneos

As narrativas se repetem com poucas alterações. Mães e pais contam que o distanciamento em relação aos filhos não ocorre porque eles querem. De repente, os tutores passam a ser excluídos da vida de seus filhos. Alguns demoram a saber que a prática é proibida pela Lei de Alienação Parental. Há genitores, inclusive, que fazem o uso equivocado de outra legislação: a Lei Maria da Penha. Algumas mães chegam a mentir dizendo que o pai teve atos violentos contra as filhas. E as meninas, acuadas, acabam validando a história na Justiça. Algumas delas passam a acreditar na situação, e uma falsa memória é construída.

A advogada Franciele Maria Bianco (veja entrevista abaixo) analisa que, em alguns casos, os próprios defensores orientam mães e pais a tomar atitudes para envolver outras leis no processo. “A partir de uma medida protetiva, o pai perde o direito de ver a filha”, diz. No dia 31 de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a Lei 14.713/2023, que determina a guarda unilateral caso haja elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar. O uso dessa lei ainda precisa ser acompanhado por especialistas.


Acusado de agressão é afastado da filha

A história começa com o pedido de divórcio, em 2016. De lá para cá, João acumula processos na Justiça. Segundo ele, o objetivo é só um: “Recuperar o direito de ser pai”. Até os 11 anos, a filha conviveu de maneira saudável com ele. “Receber um filho é uma bênção, é a experiência mais incrível que uma pessoa pode ter”, desabafa. Depois, a harmonia foi por água abaixo. “Iniciou-se uma série de acusações infundadas a meu respeito”, diz ele. Atualmente, João não tem contato com a adolescente, de 16 anos.

“Há algum tempo, uma assistente social bateu à minha porta e perguntou sobre os supostos crimes de agressão que eu teria cometido. Tiveram a ousadia de fazer algo tão criminoso com a criança, tão vergonhoso para o direito. Estão usando inadequadamente a Lei Maria da Penha, que é importantíssima para as mulheres”, narrou. A filha do homem de 48 anos não o chama mais de pai há cinco anos. Em mais de uma situação, a mãe da menina chamou a polícia afirmando que ele havia agredido a filha.

“A lei não funciona mais pra mim porque respondo à Lei Maria da Penha”, disse. Os acontecimentos acabam, segundo ele, afetando a saúde mental da filha, que não entende exatamente a briga na Justiça e acaba “ficando do lado da mãe”. “Não quero que outros pais passem por isso. Minha história deve servir de alerta. A Lei Maria da Penha não pode ser usada dessa forma. Farei uma representação na OAB”, desabafa.

Há dois anos, o homem recebeu um diagnóstico de câncer e vai precisar ser submetido a uma cirurgia. O desejo dele é passar pelo procedimento “em paz” com a adolescente. “Luto (pela guarda) com a ética que gostaria que ela lutasse. Quero ser exemplo”. Porém, o tempo que ele já perdeu com a garota não volta. “Pode ser que daqui a dez, vinte anos, ela queira me ver. Mas a Justiça não vai trazer de volta o tempo”.

‘Memórias’ viram armas

A professora Rute, 48, tinha, desde pequena, o sonho de ser mãe. Durante o casamento, ela enfrentou os ciúmes do marido para se preparar para a gravidez. Estudou, cuidou do corpo e, aos 32 anos, se sentiu pronta
para a gestação. Por anos, ela percebeu os sinais de violência psicológica e até física. Até que, em 2020, resolveu pedir o divórcio. Os filhos – uma
adolescente de 16 e um menino de 13 – foram poupados dos detalhes.

Mas a gota d’água foi quando o ex-companheiro resolveu espancar o menino porque ele havia deixado uma toalha em cima da cama. “Ele acabou me acertando com uma chinelada no braço”, conta. O homem, no entanto, não aceitava a separação. Apesar das agressões, Rute preferiu não denunciar. Em um primeiro momento, a guarda era compartilhada.

Com o passar do tempo, o adolescente começou a mudar o comportamento. Passou a ficar violento, chegando, inclusive, a agredir a mãe. Depois, a garota também mudou suas atitudes. Eles contavam histórias das quais a mãe não se recordava.

“Meu filho contou uma memória em que eu o filmava enquanto um garoto tentava afogá-lo. Minha filha segue repetindo que eu criei um trauma nela”, relata. No ano passado, a mãe descobriu a Lei de Alienação Parental e o fenômeno de criação de falsas memórias e conseguiu perceber que o pai manipulava os filhos. Atualmente, ela luta na Justiça para reaver a guarda dos adolescentes. “Ele afastou meus filhos de toda a família. Meus pais e minha irmã também entraram com um processo”, afirma. 

*Os nomes da mãe e dos pais entrevistados nesta reportagem foram trocados para preservar as identidades das fontes

Entrevista

“Pais não têm mesmo tratamento no Judiciário”

A advogada Franciele Maria Bianco, mãe e madrasta, explica que tanto mães quanto pais afastam os filhos da convivência com o outro tutor. Ela fala ainda sobre como o sistema patriarcal influencia esses comportamentos e revela a interferência de advogados em casos de alienação parental 

A maneira como a sociedade vê a configuração da família “ideal” e dos papéis exercidos pelo pai e pela mãe na vida dos filhos influencia processos de guarda?

Acredito que sim. Hoje ainda vivemos em um sistema patriarcal, o qual divide os papéis do homem e da mulher de forma muito diferenciada no sistema familiar, e nem sempre de uma forma positiva. É, na verdade, a ideia, que, por exemplo, apenas a mãe é capaz de cuidar de um bebê, por ser de sua natureza feminina, e caberia ao pai o auxílio material. Ocorre que muitas mulheres, atualmente, exercem o papel de serem provedoras do lar, com igual ou de tanta importância quanto os homens. Embora a sociedade tenha tido avanços, é certo que muitas mulheres possam sentir-se forçadas a assumir o papel de guardiãs de seus filhos em caso de término do relacionamento conjugal, seja por desinteresse do genitor em ter tal responsabilidade, ou até mesmo por sentir como uma obrigação inerente ao seu dever como mulher, evitando assim julgamentos que lhe imputem um abandono dos filhos em caso de ceder a guarda ao pai.

Há algum tipo de surpresa quando pais procuram seus direitos?

Há muitos homens que buscam o exercício dos direitos parentais de forma igualitária, responsável e que respeite o melhor interesse de seus filhos, contudo enfrentam inúmeras dificuldades na busca por seus direitos, principalmente por terem que demonstrar que são, sim, capazes de despender aos filhos os cuidados necessários para sua proteção, assim como a figura materna. É importante entender que homens e mulheres são diferentes, sim, exercem papéis importantes e significativos no desenvolvimento saudável de seus filhos, contudo o trato diferenciado que ainda existe no Judiciário, quando há disputa de guarda dos filhos menores, é um desafio diário para os operadores do direito. Alguns homens são considerados vilões por buscarem “tirar” a guarda da mãe de seus filhos, quando, em verdade, o que se pretende é o melhor para a criança. Há ainda, em meu ponto de vista, uma diferença no trato de homens e mulheres pela Justiça de família em algumas comarcas, em que observo agilidade no deferimento de requerimentos feitos pela genitora, e, quando o contrário, o genitor acaba esperando muito mais para uma decisão, mesmo que urgente e com provas. É claro que não há fundamento para esse trato diferenciado, porém não podemos esquecer que é um enfrentamento não apenas judicial, mas social.

A alienação parental só pode ser cometida por pais ou mães?

Não. A prática caracteriza-se como toda interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos pais, pelos avós ou por qualquer adulto que tenha a criança ou o adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância. Quais os principais motivos para a alienação parental? Há inúmeros motivos para a alienação parental, mas nenhum deles é justificável. É um sentimento de egoísmo, de posse do menor. Acredito que a pessoa que pratica a alienação parental possa, até mesmo, apresentar alguma patologia psicológica, não posso afirmar, contudo, como mãe, não consigo compreender e, como advogada, não posso tolerar. Apesar de ser uma opinião pessoal, ouso dizer que há também uma influência jurídica para facilitar que atos de alienação parental sejam a cada dia mais comuns, pois, quando uma mãe procura um advogado para orientações, é certo que o dever desse profissional é orientá-la quanto ao direito à ampla convivência familiar, a respeito ainda da importância da figura paterna, porém já me deparei com situações em que o conflito fica ainda mais acirrado por conta da postura do representante legal daquela mulher, com um incentivo ao litígio e com estratégias jurídicas para evitar a punição perante o ato alienante.

A partir da experiência da senhora, como os sinais de sofrimento aparecem na criança?

É certo que, quando uma criança ou um adolescente é afastado do convívio familiar, ou mesmo passa por outras situações enumeradas na lei como atos alienantes, haverá sofrimento e alteração repentina de comportamento, o que deve ser de imediato tratado também com o auxílio de profissionais da saúde, como psicólogos. Alguns sinais são escancarados, outros são silenciosos e até mesmo confundidos com outras patologias, e aí se torna uma grande discussão na área jurídica, em que, de um lado, temos uma acusação de alienação parental e, do outro, até como forma de defesa, há alegações de outros problemas causadores de tais comportamentos. Imagine que um pai, enquanto casado com a mãe do menor, faça tudo, dê banho, alimente, leve na escola, mas, quando há o rompimento conjugal, de forma abrupta a mãe impeça o contato entre pai e filho. É mais comum do que se imagina, e essa criança será a primeira a sentir o impacto, sendo que é possível que se apresentem até mesmo no ambiente escolar os sinais de que algo está impactando diretamente sua vida.

Pais envolvidos em disputa de guarda usam artifícios jurídicos que estendem essa “guerra”?

Há várias possibilidades disso. A que eu acho mais grave é quando vira uma disputa. O pai acusa a mãe de alienação, e a mulher acusa o homem de abuso. É comum em processos que envolvem menores seja feita uma prova pericial, o que chamamos de “estudo social e/ou psicossocial”, em que será analisado por profissionais nomeados pelo juiz o contexto em que essa criança ou adolescente se encontra. É nesse momento que há algumas tentativas de manipulação da verdade, e por isso é importante que o profissional do direito, o advogado, se atente e tenha experiência para não permitir que falsas denúncias sirvam como instrumento de afastamento parental. E é justamente no curso do processo que começam as acusações e que se estendem aos companheiros dos genitores (madrasta/padrasto) e outros familiares. É uma tragédia familiar quando, em prol do êxito processual, começam a surgir falsas acusações de crime. Ao alegar um fato, há de se ter o mínimo de instrumento de prova.

As punições previstas na lei funcionam?

Falando de São Paulo e Santa Catarina, tenho visto que, para os pais que não cumprem o que é previsto na guarda, são punidos rapidamente. Quando não cumprem horários, já sofrem busca e apreensão. Para as mães, nem sempre é assim. Já vi casos de aplicarem todas as sanções possíveis na lei, como advertência , multa, declaração de ofício do ato alienante, contudo, ainda assim, há certa relutância em modificar a guarda do menor em prol do pai. Digo isso evidentemente nos casos em que observo. Há uma evolução gradativa no Judiciário, e muitos juízes estão alinhados na aplicação da lei de alienação parental. É o que nos dá esperança

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