A desavença começa aos poucos. Primeiro vêm os sinais: um dos pais passa a tomar as decisões pelo filho e afasta, sutilmente, o outro guardião. Um dos tutores começa a desconstruir a imagem do outro. A mãe é, muitas vezes, tachada de irresponsável por “abandonar” o lar. O pai passa de herói a monstro por pedir a separação. O extremo dessas situações é quando um dos tutores consegue afastar totalmente o filho ou a filha do outro guardião – casos que ocorrem, principalmente, em meio a divórcios ou dissoluções de uniões estáveis. Na legislação brasileira, o nome dessa quebra de vínculo afetivo é alienação parental, situação que leva uma média de duas pessoas, diariamente, a procurar a Justiça em Minas.
A situação pode acarretar multa, reversão de guarda e outras sanções para a mãe ou para o pai alienador. Segundo dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), nos sete primeiros meses do ano, o órgão recebeu 518 relatos de mães e pais que sentem que o vínculo afetivo com seus filhos foi destruído. Em 2022, foram 909 casos contra 778 de 2021 – um aumento de 17% no período.
A vendedora Ana* entrou para essa estatística há cinco anos, quando pediu a separação. O ex-companheiro não aceitava o fim do relacionamento. “Ele usava meu filho (que hoje tem 14 anos) como moeda de troca. Ameaçava interromper meus dias de visitação, inventava calúnias a meu respeito”, conta. A situação piorou quando ela começou um namoro. “Meu filho tinha medo de desagradar o pai.
Mudou de comportamento, passou a ser violento comigo e chegou a me agredir. Falava que me amava só escondido”, detalha a mãe. Segundo a vendedora, com a ajuda de um primo advogado, o ex conseguiu a guarda unilateral, ou seja, a criança passou a morar unicamente com ele. Por isso, ela precisou entrar com uma ação de alienação parental. A luta pela guarda do filho causou um quadro de depressão que obrigou Ana a procurar ajuda psicológica.
Em julho deste ano, o pai do garoto morreu após sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Atualmente, o menino vive com a família do pai. “Os parentes paternos acreditam que a morte dele (do ex) teve relação com o término da nossa relação. Meu filho está ‘preso’ lá”, conta. A mãe tem uma audiência marcada para os próximos dias e espera provar que nunca abandonou o filho. “Juntei todas as provas (fotos, vídeos e conversas) e vou mostrar que nunca o deixei. A gente sempre foi muito unido. Dobro meus joelhos todos os dias para rezar. Só quero meu filho”, finaliza.
Para a advogada Franciele Maria Bianco, que trabalha com direito de família desde 2015, o fenômeno é grave e pode prejudicar o desenvolvimento de crianças e adolescentes, além de colocar
toda a família em sofrimento. “É muito difícil para um pai ou mãe – que está sendo impedido ou impedida de seus direitos parentais – se deparar com um processo judicial em que há alegações até mesmo insanas. O interesse da criança fica de lado para dar espaço a uma série de acusações recíprocas e até mesmo conjugais”, explica a especialista.
A Lei 12.318 de 2010 – da Alienação Parental – vem passando por debates. Há, inclusive, projetos de lei tramitando no Congresso para a extinção da legislação. Para especialistas, a discussão tem relação com o mau uso da lei. Alguns genitores usam a lei em uma “guerra” de narrativas no Judiciário. “O pai acusa a mãe de alienação, e a mulher acusa o homem de abuso. É comum, em processos que envolvem menores, que seja feita uma prova pericial, o que chamamos de “estudo social e/ou psicossocial”, em que será analisado por profissionais nomeados pelo juiz o contexto em que essa criança ou adolescente se encontra. É nesse momento em que há algumas tentativas de manipulação da verdade, e, por isso, é importante que o profissional do direito se atente para não permitir falsas denúncias”, alerta a advogada Franciele Maria Bianco.
Um homem de 48 anos, pai de uma adolescente de 16 anos, conta já ter sofrido com o mau uso da lei. “Chegou ao ponto de a minha filha me denunciar por agressão, usando uma lei importantíssima para as mulheres, que é a Maria da Penha. Só no ano passado, tentaram até me prender algumas vezes”, contou o homem, que luta pelo direito de ser pai na Justiça.
Psicanalista e doutora em direito civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Giselle Groeninga analisa que, em casos de alienação parental, a criança ou o adolescente fica sem a presença e influência de um dos pais, o que pode causar reflexos na formação psíquica da vítima. “O principal problema disso é que um não pode exercer a função dos dois. E o ideal é que a criança tenha o relacionamento com o pai e com a mãe (ou com aqueles que exercem as funções paterna e materna)”, detalha. Por isso, a especialista também em direito de família considera a tipificação de alienação parental importante, já que a legislação prevê uma perícia na qual se avalia toda a situação, a dinâmica e os reflexos que estão sendo causados nas crianças e adolescentes. “Saímos de uma situação de culpado, inocente, vítima e algoz. A avaliação pode, inclusive, sensibilizar a família para o que está acontecendo”.
A alienação parental pode ocorrer com outras pessoas da família ou até mesmo com quem não faz parte do núcleo familiar (como babás). O fenômeno é mais comum entre avós. Há aqueles que impedem o contato dos netos com os próprios pais, mas existem também avós que são afastados da convivência com os netos.
“Pode não ser muito falado a respeito, contudo há casos em que a avó materna é quem pratica alienação parental contra a própria filha, principalmente quando se trata de uma mãe jovem e que reside ainda na casa de seus pais. É um problema muito grave no contexto familiar, uma vez que a criança cresce com seus valores e concepções invertidos pela influência constante do ato alienante, que muitas vezes é diário”, exemplifica a advogada Franciele Maria Bianco. Joana*, que é bióloga, considera viver uma situação de alienação em relação aos netos – um menino de 10 anos e uma menina de 12.
As crianças moram com a filha dela em outra cidade. Por anos, a idosa visitou a família. Ela participou dos nascimentos e passava mais de um mês por ano à disposição da filha e das crianças. Com o decorrer do tempo, a filha foi mostrando sinais de distanciamento. Até que, em 2018, na última viagem, a bióloga passou 40 dias na cidade da filha sem poder ver os netos. Ela chegou a ir até a escola das crianças, mas a filha ameaçou chamar a polícia para ela. “Já tentei duas mediações e continuo mandando presentes e cartinhas para uma amiga, que entrega as encomendas para eles. Hoje, vivo sozinha”, desabafa.
A história começa com o pedido de divórcio, em 2016. De lá para cá, João acumula processos na Justiça. Segundo ele, o objetivo é só um: “Recuperar o direito de ser pai”. Até os 11 anos, a filha conviveu de maneira saudável com ele. “Receber um filho é uma bênção, é a experiência mais incrível que uma pessoa pode ter”, desabafa. Depois, a harmonia foi por água abaixo. “Iniciou-se uma série de acusações infundadas a meu respeito”, diz ele. Atualmente, João não tem contato com a adolescente, de 16 anos.
“Há algum tempo, uma assistente social bateu à minha porta e perguntou sobre os supostos crimes de agressão que eu teria cometido. Tiveram a ousadia de fazer algo tão criminoso com a criança, tão vergonhoso para o direito. Estão usando inadequadamente a Lei Maria da Penha, que é importantíssima para as mulheres”, narrou. A filha do homem de 48 anos não o chama mais de pai há cinco anos. Em mais de uma situação, a mãe da menina chamou a polícia afirmando que ele havia agredido a filha.
“A lei não funciona mais pra mim porque respondo à Lei Maria da Penha”, disse. Os acontecimentos acabam, segundo ele, afetando a saúde mental da filha, que não entende exatamente a briga na Justiça e acaba “ficando do lado da mãe”. “Não quero que outros pais passem por isso. Minha história deve servir de alerta. A Lei Maria da Penha não pode ser usada dessa forma. Farei uma representação na OAB”, desabafa.
Há dois anos, o homem recebeu um diagnóstico de câncer e vai precisar ser submetido a uma cirurgia. O desejo dele é passar pelo procedimento “em paz” com a adolescente. “Luto (pela guarda) com a ética que gostaria que ela lutasse. Quero ser exemplo”. Porém, o tempo que ele já perdeu com a garota não volta. “Pode ser que daqui a dez, vinte anos, ela queira me ver. Mas a Justiça não vai trazer de volta o tempo”.
A professora Rute, 48, tinha, desde pequena, o sonho de ser mãe. Durante o casamento, ela enfrentou os ciúmes do marido para se preparar para a gravidez. Estudou, cuidou do corpo e, aos 32 anos, se sentiu pronta
para a gestação. Por anos, ela percebeu os sinais de violência psicológica e até física. Até que, em 2020, resolveu pedir o divórcio. Os filhos – uma
adolescente de 16 e um menino de 13 – foram poupados dos detalhes.
Mas a gota d’água foi quando o ex-companheiro resolveu espancar o menino porque ele havia deixado uma toalha em cima da cama. “Ele acabou me acertando com uma chinelada no braço”, conta. O homem, no entanto, não aceitava a separação. Apesar das agressões, Rute preferiu não denunciar. Em um primeiro momento, a guarda era compartilhada.
Com o passar do tempo, o adolescente começou a mudar o comportamento. Passou a ficar violento, chegando, inclusive, a agredir a mãe. Depois, a garota também mudou suas atitudes. Eles contavam histórias das quais a mãe não se recordava.
“Meu filho contou uma memória em que eu o filmava enquanto um garoto tentava afogá-lo. Minha filha segue repetindo que eu criei um trauma nela”, relata. No ano passado, a mãe descobriu a Lei de Alienação Parental e o fenômeno de criação de falsas memórias e conseguiu perceber que o pai manipulava os filhos. Atualmente, ela luta na Justiça para reaver a guarda dos adolescentes. “Ele afastou meus filhos de toda a família. Meus pais e minha irmã também entraram com um processo”, afirma.
*Os nomes da mãe e dos pais entrevistados nesta reportagem foram trocados para preservar as identidades das fontes
A advogada Franciele Maria Bianco, mãe e madrasta, explica que tanto mães quanto pais afastam os filhos da convivência com o outro tutor. Ela fala ainda sobre como o sistema patriarcal influencia esses comportamentos e revela a interferência de advogados em casos de alienação parental