Dor, tristeza, saudade, perplexidade, impotência e até mesmo raiva são alguns sentimentos que rondam familiares e amigos de quem tira a própria vida. E muitos dos que ficam se consideram “sobreviventes do suicídio” e não conseguem conviver com a ausência de quem se matou, como é o caso de um músico de 43 anos que tenta entender a morte trágica do pai, que tirou a própria vida aos 67 anos, há um ano e quatro meses.

“No primeiro momento, eu não aceitei bem. Achei que ele poderia ter sido egoísta, que ele não tinha pensado no resto das pessoas que ficam aqui”, desabafa o filho, lembrando que familiares também tentam conviver com as sequelas do suicídio. “Minha mãe ficou muito desestruturada. Sempre foram os dois, e ela ficou sozinha. Não dorme bem, não descansa e está sempre com saudade do meu pai. Fala dele no presente, como se ele estivesse aqui ainda”, lamenta o músico.

Quase 800 mil pessoas morrem por suicídio anualmente no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Isso equivale a uma morte a cada 40 segundos. E, de acordo com a Associação Internacional de Prevenção ao Suicídio, cada suicídio afeta 135 pessoas, que ficam psicologicamente abaladas e traumatizadas. No Setembro Amarelo, mês dedicado à campanha do Ministério da Saúde criada em 2015 para fomentar o diálogo sobre o suicídio, a situação de quem fica também deve ser discutida na opinião do psiquiatra, professor da Unicamp e um dos fundadores da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (Abeps), Neury Botega.

“Em primeiro lugar, é preciso considerar que o suicídio é uma morte que é imposta para quem fica, um acontecimento para o qual ninguém está preparado. Quando nós temos conhecimento de uma morte por suicídio de uma pessoa muito querida, nossa primeira reação é de estarrecimento. A gente fica meio passado e, logo em seguida, percebe uma mistura de sentimentos”, explica.

O primeiro questionamento das pessoas que perdem alguém nessas condições, segundo Botega, é o que elas poderiam ter feito para evitar a morte. “Fica a pergunta: ‘Eu deixei de fazer alguma coisa? Será que esse suicídio poderia ter sido evitado?’”, diz ele.

O sentimento de uma relações-públicas de 35 anos que perdeu um irmão de 17 – ele se matou com um tiro na cabeça – é de um eterno vazio, mesmo tendo passado 24 anos. “Não tem um dia de minha vida em que eu não pense nele, em que que eu escute uma música e não me lembre dele”, relata. Ela afirma que não se sente culpada por não ter percebido que havia algo errado. “Eu me sinto culpada por não ter aproveitado mais a companhia dele”, conta.

Para a irmã, as famílias têm dois caminhos quando acontece um suicídio. “Ou elas se acabam, com um culpando o outro, ou elas se unem ainda mais. Na minha família, graças a Deus, a gente se uniu ainda mais”, diz. Para ela, a sensação é de faltar alguma coisa em sua vida. “Sempre acho que vou perder as pessoas que estão comigo”, confessa.

Processo. “É importante a gente falar sobre tudo isso porque quem está passando pelo luto do suicídio tem mais dificuldade. É um luto mais complicado justamente porque envolve a convivência de sentimentos opostos. É um processo muito mais doente e mais lento também. Não é à toa que há uma preocupação muito grande em dar apoio emocional às pessoas que perderam alguém pelo suicídio”, afirma o psiquiatra Neury Botega.

Estatística

Estado. Entre 1° de janeiro e 17 de agosto deste ano, 595 pessoas tiraram a própria vida em Minas, uma média de quase três casos por dia, segundo a Secretaria de Estado de Saúde.

 

‘É preciso dar apoio aos enlutados’

O tempo é o melhor remédio para superar a ausência e todos os sentimentos que aprisionam quem fica, segundo o psiquiatra Neury Botega. “Esses sentimentos devem ser pensados, digeridos, e isso precisa de tempo”, explica.

Segundo o especialista, é essencial oferecer apoio psicológico à família e a outros enlutados pelo suicídio. “Muitas vezes, é necessária a ajuda de um profissional psicoterapeuta, para nos ajudar a entender tudo aquilo que aconteceu”, afirma.

Bodega também orienta as pessoas a conversarem com quem já viveu o mesmo problema e a criarem grupos de apoio. Ele indica o Centro de Valorização da Vida (CVV), pelo telefone 188.

 

Minientrevista

Neury Botega

Psiquiatra

Parentes de suicidas têm muito receio do julgamento alheio

Movida pelo sentimento de culpa, aquela pessoa que enfrenta o luto por suicídio tem muito receio do julgamento dos outros, de falarem que a família não deu apoio à pessoa, seja o marido, seja a esposa, seja os filhos que não perceberam. Isso aumenta o pacto de silêncio. Mesmo no meu consultório, os pacientes evitam comentar.

Como acolher e entender o sentimento de raiva de alguns parentes?

Algumas pessoas começam a se sentir muito mal porque elas também têm raiva do falecido. Às vezes, elas perguntam para mim: “Poxa, a pessoa estava sofrendo, tirou a própria vida, e eu estou sentido raiva. Que sentimento é esse que estou sentindo? Eu não quero sentir, eu não quero ter raiva, eu queria compreender”. Mas é importante a gente enfatizar que o sentimento de raiva é plenamente normal nessa circunstância.

É comum tentar culpar outra pessoa pela morte?

Sim. Procuram um culpado. Como eu não quero sentir culpa e não quero continuar a me sentir tão mal, procuro um culpado por isso. Se eu conseguir um culpado, na minha cabeça parece que, de alguma forma, eu vou encontrar um encaixe. E, normalmente, essa explicação não é muito válida, pois o suicídio é um fenômeno complexo. É errado a gente simplificar o suicídio. É errado a gente dar uma causa única para o suicídio. Muitas vezes, aquilo que a gente acha que foi a causa foi a última gota d’água de uma história de vida problemática.