Frustração

‘Volta dos que não foram’ é dura, avaliam especialistas

Barrados na fronteira enfrentam dificuldades e falta de apoio para retomar a vida no Brasil

Por Jéssica Almeida
Publicado em 15 de março de 2020 | 03:00
 
 
 
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O retorno daqueles que foram barrados na fronteira costuma ser um processo muito difícil. Afinal, muitas vezes, eles se desfazem dos bens materiais antes de partir, na esperança de conseguir recuperar tudo trabalhando no novo país. “A frustração de não ter conseguido chegar e o peso social que vai enfrentar, de alguém que não atingiu objetivo, são determinantes. A ideia do fracasso e o processo de humilhação vão repercutir numa dificuldade de retomar a vida”, explica a doutora em ciências humanas e professora titular da Universidade do Vale do Rio Doce (Univale) Sueli Siqueira.

A estudante Kamila Karem Gonçalves, 20, saiu de Ipatinga, no Vale do Aço, com a mãe rumo aos Estados Unidos. Durante os seis meses que ficou detida por lá, entre postos de imigração e cadeias, ela chegou a ser separada da mãe mais de uma vez. Por fim, Kamila acabou retornando sem ela no dia 6 de março. “Eu nem sabia que ia voltar. Chamaram meu nome e o da minha amiga. Fomos para uma sala, nos mandaram trocar de roupa e falaram que iam levar a gente para o aeroporto. Estava só com minha roupa do corpo e documentos. Sumiram com meu telefone”, conta. “Minha mãe ficou na cadeia. Eu nem pude abraçá-la, porque não sabia que vinha embora. Só mandaram eu sair da cela”, relata. 

Do Aeroporto Internacional de Confins, Kamila seguiu para a casa do pai. “Ainda não sei o que vou fazer. Estou meio perdida. Fiquei presa por seis meses e, de repente, estou livre. É muito tempo”, desabafa.

Desamparados. Se há relatos de maus-tratos cometidos pelo governo dos Estados Unidos, os deportados também não encontram muito amparo entre as autoridades brasileiras. Muitas vezes, o lanche que a BH Airport, concessionária que administra o aeroporto de Confins, serve para eles no desembarque é o único gesto de acolhimento que recebem ao retornarem ao país de origem.

A intervenção do governo brasileiro para facilitar o processo de reinserção desses indivíduos na sociedade é algo considerado fundamental pelo professor do programa de pós-graduação em geografia da PUC Minas Duval Fernandes. “Em primeiro lugar, não devemos criminalizar nenhum emigrante. São brasileiros que foram tentar a sorte, não conseguiram, e estão voltando em situação de extrema vulnerabilidade”, argumenta. “Deveria haver algum atendimento para essas pessoas. Não é só lanchinho, é preciso dar local para trocar de roupa, tomar banho, ajudá-las a retornar para suas cidades, e o mais importante: ouvi-los”, alega.

Uma alternativa interessante, de acordo com Fernandes, seria a criação de um posto de atendimento ao migrante no aeroporto de Confins, ainda que funcionasse apenas conforme a demanda, nos moldes do que já existiu no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, com tratamento humanizado para deportados e pessoas em situações semelhantes.

Enquanto isso não acontece, organizações da sociedade civil vão se movimentando para ajudar. O Observatório de Migração Internacional de Minas Gerais, composto por instituições como PUC Minas, UFMG, UEMG, UNI-BH, Univale, Instituto Izabela Hendrix e ONGs que possuem experiência em atendimento a imigrantes, vai realizar, na próxima terça-feira, o II Fórum Estadual de Migrações, em parceria com a Defensoria Pública da União (DPU). O evento acontece a partir das 18h30, na rua Pouso Alto, 15, no bairro Serra, na região Centro-Sul de Belo Horizonte. Entre os temas discutidos, o encontro vai tratar da formação de um grupo de trabalho que lide com o tema dos retornados dos Estados Unidos, pensando formas de contribuir para que a situação seja melhorada.

“Acho que o mais importante é a escuta, sem abrir mão das outras coisas, porque nesse processo fazem-se os encaminhamentos. Pessoas especializadas vão perceber se há algum trauma maior, um problema que precisa ser trabalhado, para que essa pessoa volte bem à sociedade”, defende Fernandes.

 

Donald Trump não deve recuar

Eleito em 2016 com um forte apelo anti-imigração, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem investido em políticas cada vez mais duras em uma tentativa de impedir a entrada de estrangeiros indocumentados pela fronteira. Se, num primeiro momento, o alvo dele eram os mexicanos, o discurso agora passa a reverberar sobre outras nacionalidades.

“Os brasileiros não têm recebido acolhimento tão bom nos EUA. Mesmo quem mora lá e tem os documentos em dia, e até mesmo turistas, está fragilizado, já que, com a deportação, vem o estigma de que somos indesejáveis”, afirma o professor de política internacional da UFMG Dawisson Belém Lopes. 

Em campanha pela reeleição em 2020, Trump deve apostar novamente nesse discurso. “A estratégia dele é criar fantasmas, tentar eleger inimigos externos pra gerar coesão interna. É uma tentativa de instrumentalizar o medo, transformar o estrangeiro em vilão e, assim, gerar mais coesão em sua base. É uma fórmula clássica para ganhar a eleição”, analisa Lopes.

Num eventual segundo mandato, Trump deve recrudescer ainda mais as medidas. Como pontuou o cientista político Yascha Mounk em artigo para a revista “The Atlantic”, líderes populistas, quando reeleitos, se sentem fortalecidos para tentar concretizar seus sonhos despóticos.

“A tendência é que ele se importe cada vez menos com os juízos da população e com as limitações institucionais e leve essas políticas às últimas consequências. É temerário e vale para os EUA, mas para outros países também”, alerta o professor.

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