Polêmica

Febre nas mídias digitais acende debate sobre se todo mundo é influencer

Profusão de profissionais que se definem como tal liga alerta sobre riscos de se submeter à opinião alheia


Publicado em 26 de dezembro de 2023 | 06:30
 
 
 
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De terno alinhado, barba feita e cabelo fixado com brilhantina, a voz ecoava através da TV e chegava aos lares com a autoridade que lhe era conferida. Agora, diante de uma câmera caseira e com os trajes mais confortáveis possíveis, os termos coloquiais muitas vezes só são entendidos por um público específico, a famosa “bolha” que revela a força do nicho neste universo globalizado.

Fato é que o perfil do tradicional “formador de opinião” mudou a tal ponto que não apenas ele passou a ser conhecido pela alcunha de “influenciador digital”, como sua própria figura superou a hegemonia do homem branco de meia-idade para se estender a diferentes faixas etárias, gêneros, raças, classes sociais e nacionalidades. Esse processo de “descentralização da mídia e liberação do polo de emissão” dá o tom do “ciclo midiático que estamos vivendo”, avalia Camila Mantovani, professora de comunicação social da UFMG. 

“Além da possibilidade de criar conteúdos com um conjunto de ferramentas para edição de imagem e som, que vai se consolidando a partir dos computadores pessoais e dos ambientes multimídia, passamos a ter à nossa disposição as condições para disseminar esse conteúdo sem submetê-lo ao crivo de um editor, e, ainda assim, atingir um grande número de pessoas”, sublinha a docente.

Consultora de comunicação e marketing de influência, Luiza Habib concorda. “O online nos conecta fortemente a um sentimento de poder e pertencimento, facilitando, assim, criar, produzir e comunicar todo tipo de desejo que conseguirmos no digital”, diz. Com o investimento massivo e cada vez mais frequente de empresas no segmento, Luiza provoca: “Portanto, por que não buscar ganhar dinheiro, supostamente ‘fácil’, apenas com a minha valiosa opinião?”. 

A força do exemplo 

Na visão de determinado grupo, ele detém um conjunto de valores que o credenciam a influenciar a opinião alheia. A definição atende tanto ao “formador de opinião” do passado quanto ao influencer contemporâneo, que Camila Mantovani relaciona “à discussão sobre comunicação de massa dos anos 1950”.

“A questão da influência existe há muito tempo e está nas origens da área de marketing; o que é novo são as ferramentas digitais, que transformaram a difusão e a velocidade dessa comunicação virtual e instantânea”, corrobora Waldiane de Ávila, especialista em marketing, para quem a persuasão da tradicional publicidade foi substituída pela “força do exemplo”.

“Os seguidores são atraídos por essa esfera da vida privada do influenciador”, afiança. Ou seja, com o esgarçamento dos limites entre público e privado, o que ocorre no cotidiano de uma pessoa ultrapassou a relevância da obra. Com isso, grandes marcas ampliaram sua presença nas redes, “aproximando-se dos influenciadores numa tentativa de recuperar o controle do que é dito sobre elas”, pontua Camila.

Fofoca  

O modelo, no entanto, carrega seus próprios riscos. Recentemente, uma matéria do “Fantástico”, da Rede Globo, revelou que a Polícia Civil investiga influenciadores que realizavam publicidade para jogos de azar – prática proibida no Brasil –, como Viih Tube, Mel Maia, Juju Salimeni e MC Kauan, que têm vídeos superando 10 milhões de visualizações em seus canais no YouTube.

“Sabemos que a questão cultural é o principal determinante dos desejos de comportamento de uma pessoa e é onde reside a força desse profissional que é o influencer. Quando o seu trabalho é a sua reputação, você precisa ter um cuidado redobrado e, logicamente, jamais se envolver com uma prática que fere a legislação brasileira”, alerta Waldiane. 

No best-seller “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, publicado em 2011, o escritor isralense Yuval Harari conclui que o gosto por atribuir valores de confiabilidade acompanha o ser humano desde os primórdios, numa análise que ele batiza de “teoria da fofoca”. Com o volume de informações da sociedade contemporânea e a incapacidade de dominar essa incrível gama de assuntos, torna-se natural que as pessoas procurem um atalho.

“Se tem alguém que realiza essa espécie de curadoria e facilita a minha tomada de decisões, eu acabo conferindo a ele o status de influenciador”, opina Camila. De acordo com a professora da UFMG, o “apelo dos influencers nasce desse excesso de informações”. 

Expectativa x Realidade 

Com a chegada do YouTube, em 2005, os criadores de conteúdo da plataforma de vídeo ficaram conhecidos como “vloggers”, abreviação para “videologgers”, antes de caírem na boca do povo como “youtubers”. A partir de 2015, diante do boom de diversas redes sociais, como Twitter, Instagram e Facebook, a ampliação dessa influência fundamentou a designação “influencer”, não mais restrito ao YouTube.

Em “The Qualified Self: Social Media and the Accounting of Everyday Life”, ainda não traduzido no Brasil, a escritora norte-americana Lee Humphreys conceitua esse registro em mídia como “documentação reflexiva de detalhes cotidianos da nossa vida”, aponta Camila. Álbuns de bebê e fotografias de viagem eram “formas analógicas de falar sobre a nossa vida cotidiana”. O compartilhamento, porém, permanecia restrito.

Com a facilidade de “registrar e disseminar a experiência ao mesmo tempo em que a vivenciamos”, um processo que já estava presente se expandiu, “graças ao desejo atemporal do ser humano de permanecer, deixar um vestígio para que outras pessoas possam saber de nós”, salienta Camila Mantovani. Na visão da norte-americana Lee Humphreys, há quatro níveis para entender esse registro cotidiano, que hoje é mediado pelas redes sociais: compartilhar, representar uma identidade, reter a memória e avaliar.

“Muitas vezes, a compreensão de nós mesmos vai emergir dessa representação que fazemos da nossa identidade na mídia. Essa seleção reflete a forma como gostaríamos de viver, e não a forma como efetivamente vivemos”, afirma a docente, que utiliza um exemplo empírico: as relações com a família, com os alunos como professora universitária e como dançarina, de repente são expostas para todos esses públicos na internet.

Glamourização 

“Se expor é sempre um risco. Quando mostramos facetas da nossa personalidade que estavam restritas a interações presenciais, acontece inevitavelmente uma quebra de expectativa em relação ao outro, que pode ser positiva ou negativa. É essa tensão que notamos em relação aos influenciadores”, observa. 

“Certamente, o estilo de vida propagado pelos influenciadores é muito glamouroso, de celebridade, o que atrai tanto pessoas que gostariam de ter a mesma atividade quanto quem assiste, que deposita ali o seu momento de sonhar, imaginar”, complementa. O perigo de tal escapismo seria “perder a dimensão da realidade e não entender que há interesses por trás, remuneração”.

“Não podemos depositar toda nossa vida na mão de uma pessoa, é necessário manter certa autonomia”, conclui a professora, ressaltando que públicos vulneráveis como crianças e adolescentes precisam de “regulamentação do uso, seja pelos pais, seja pelas leis que estão sendo debatidas no ambiente digital”. 

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