Era 20 de março de 2020. Pela primeira vez na história de Belo Horizonte, a cidade precisou se recolher por conta da doença desconhecida que assolava o mundo: o novo coronavírus. Com o objetivo de retardar a transmissão e não provocar um colapso no sistema de saúde, o isolamento social se tornou o único remédio para evitar uma explosão de óbitos. Ruas, avenidas e praças ficavam praticamente desertas até nos horários de pico e só serviços essenciais, como farmácias, supermercados, padarias, hospitais e clínicas, poderiam funcionar.

Na época, o prefeito Alexandre Kalil (PSD) comparou a situação a uma guerra. "Ontem tive o privilégio de rever o pronunciamento do presidente da França, que usou o termo 'guerra' exatamente para falar desse vírus. A pandemia é muito grave, a pandemia é guerra, e ela chegou", disse. Depois de mais de dois meses, no fim de maio, foi iniciada uma flexibilização "lenta e gradual", conforme enfatizou o chefe do Executivo – Belo Horizonte já aparecia como uma das capitais com menores registros e contabilizava 42 óbitos. 

Foram duas fases de reabertura dos setores não essenciais até que, no mês seguinte, quando os índices da Covid-19 voltaram a crescer, a capital precisou se fechar novamente, em 29 de junho. "O bombardeio chegou à nossa cidade. E nós vamos tentar controlá-lo", declarou Kalil – a cidade acumulava 482 mortes e quase 20 mil casos confirmados da doença. Poucos dias depois, tornou-se obrigatório o uso de máscaras nos espaços públicos e em áreas de circulação de pessoas. 

No início de agosto, os números ficaram favoráveis, e foi retomada a abertura das atividades econômicas. E esse foi o período em que a cidade ficou aberta por mais tempo: cinco meses. Setores que estavam fechados desde março, como bares, restaurantes e shoppings centers, puderam abrir as portas. Mas, no dia 11 de janeiro, só serviços essenciais foram mantidos pela terceira vez por conta do agravamento da pandemia. Já eram quase 2.000 óbitos e uma ocupação dos leitos de UTI acima de 86%. "Chegamos ao limite", enfatizou o prefeito nas redes sociais.

Por 20 dias, a capital permaneceu com a maioria das atividades fechadas, apesar de a adesão ao isolamento social ter se reduzido em relação ao início da pandemia. Mesmo assim, a transmissão ficou controlada, e Belo Horizonte reabriu pela terceira vez, até chegar à pior fase das estatísticas: desde 6 de março, o aumento exponencial de casos forçou um novo fechamento, com restrições ainda mais duras na semana seguinte, e a cidade começava a viver um colapso no sistema de saúde. "Eu fui tomado por otimismo enganoso e perigoso. Voltamos à estaca zero", afirmou Kalil na época.

De acordo com o infectologista e membro do comitê de enfrentamento da Covid-19 na capital, Estevão Urbano, o atual decreto tem praticamente os mesmos parâmetros do que trancou a cidade em março do ano passado, diferentemente de janeiro, quando parques e praças seguiram abertas. "Só pode funcionar aquilo que é muito essencial. Até uma saída na rua, uma caminhada na praça pode gerar algum risco. No momento em que o contágio é muito grande, os riscos obviamente são maiores. Por isso que, em janeiro, essas atividades de rua foram permitidas; agora, nem isso foi", explica.

Pior patamar da pandemia

E, justamente por conta da circulação das variantes em Belo Horizonte, o membro do comitê de enfrentamento da doença alega que não há previsão sobre quando o atual momento de fechamento pode começar a surtir efeitos. "Teoricamente, começaria nos próximos dois dias. Mas, agora, vêm duas condições que nos deixam em dúvida. A cidade não esvaziou tanto quanto era esperado, e a segunda é que não sabemos se (as variantes) respondem da mesma forma ou com a mesma rapidez ao distanciamento do que a cepa antiga", enfatiza.

O especialista alegou que a menor adesão ao isolamento social é reflexo muito mais da extensão da pandemia e de necessidades econômicas do que do negacionismo de uma parcela da população. "Muitas pessoas deixaram de aderir em um segundo momento por estarem desgastadas emocionalmente com um ano de doença ou dilaceradas do ponto de vista econômico, principalmente depois que o auxílio emergencial acabou. Essas pessoas se sentiram desamparadas", citou. Porém, ele lembra a importância de manterem os cuidados e de se evitar sair de casa, principalmente no momento em que a cidade vive a pior fase da pandemia.

Idas e vindas da flexibilização

Após quatro fechamentos do comércio não essencial em Belo Horizonte durante o ano, Estevão Urbano lembra que a medida é adotada para proteger o atual momento, e não o futuro. "Na verdade, (o isolamento) diminui a circulação do vírus naquele período em que estava mais crítico e, com isso, consegue reduzir as internações e os óbitos. E, depois, como não tem vacina e muitas pessoas ainda não se infectaram, o vírus volta. Isso é o que a gente chama de 'intermitência', vai e volta protegendo e minimizando óbitos", pontuou.

Para o especialista, a cidade também errou, mas sempre seguiu a ciência e, com isso, reduziu o impacto da Covid-19 quando comparada a outras regiões do país. O infectologista lembra ainda que o Brasil como um todo foi o pior país do mundo na condução da pandemia.

"Poderíamos ter menores números em Belo Horizonte se tivéssemos um país com medidas homogêneas simétricas, concatenadas. Agora, o Brasil brincou com a pandemia, de uma forma geral", criticou. Conforme disse Urbano, esse foi o motivo do surgimento de variantes do vírus ainda mais letais e transmissíveis. "Nós deixamos o vírus se multiplicar sem controle. Então, era esperado que um dia uma mutação aparecesse", avaliou.

Impacto no comércio

O professor de economia do Ibmec Felipe Leroy, tantas idas e vindas no fechamento da cidade pode ser ainda mais prejudicial para o comércio – ao mesmo tempo que foram quatro em Belo Horizonte, capitais como Rio de Janeiro e São Paulo tiveram medidas mais restritivas somente neste ano, apesar dos índices maiores de mortalidade pela Covid-19. "Você cria um 'efeito sanfona'. Imagina que o comerciante se prepara para vender mais, organizar o negócio e tem a notícia repentina do fechamento da economia. Então, ele vai, demite de novo, e, daqui a pouco, autorizam novamente o funcionamento. Vai precisar contratar de novo, fazer estoque em um momento de dificuldade. Os impactos econômicos são ainda maiores", pontuou.

Leroy garantiu que a falta de planejamento na pandemia está cobrando a economia atualmente. "Estamos com a inflação estourando, empresas fechando ainda mais, setores que já não se sustentam mais. Isso é uma lástima, já que muitos países desenvolvidos conseguiram planejar melhor os fechamentos, comprar vacinas suficientes e reduzir a taxa de contágio para a economia voltar", finalizou.

Dramas ainda maiores

Com as escolas paralisadas e sem poder trabalhar, a motorista de van escolar Marília Duarte Ribeiro, de 43 anos, contou, em uma reportagem do portal O Tempo no início da pandemia, sobre as dificuldades que enfrentava e da necessidade de se reinventar. Passados quase 365 dias, a situação é ainda pior. "Está desesperador. No ano passado, até pensei em ir embora para a casa dos meus pais, no interior, mas minha filha precisou ficar, e tive que me virar", relata.

Pouco depois de ter as atividades interrompidas, Marília passou a trabalhar com aplicativos de transporte. "Só que eu perdi um amigo assassinado e comecei a ter síndrome do pânico ao volante, não consegui mais rodar por medo. Depois, passei a fazer marmitas congeladas para vender, só que tem semana que não entrego nenhuma encomenda", lamenta. Sem condições financeiras, a motorista ainda pensou em vender a van. "Está faltando dinheiro, aumentaram muito as dívidas, só não vendi o veículo porque, quando tudo voltar, será mais um problema", alega.

Sem auxílio emergencial desde dezembro e nenhuma perspectiva de volta às aulas por conta do agravamento da pandemia, Marília diz que o ano está ainda mais incerto que 2020. "Estou com a van parada e tendo prejuízo, o seguro venceu. Está desesperador. Cheguei à conclusão de que 2021 será ainda pior, já que a transmissão segue descontrolada. Pelo menos em casa não faltou comida, mas tem muita gente passando fome aqui, no bairro", conta. 

Junto com outros motoristas de van escolar, ela participa de um grupo criado para ajudar a incrementar a renda neste período de pandemia. "É uma cooperativa e tem muitas ideias para tentar ajudar, mas também precisamos do apoio do governo. Estamos tentando pegar as vans e oferecer às empresas transporte de funcionários, só que a demanda ainda é pequena", pontua.

Sem doações e muita procura

No fim de março do ano passado, Caio Vinícius, de 23 anos, também participou de uma reportagem do portal O Tempo sobre o aumento do abandono de animais por conta da pandemia. Membro da ONG Vida Animal Livre, o protetor de animais revela que o panorama é ainda mais assustador em 2021. "Está pior que nunca. Recebemos mais de 20 ligações por dia solicitando o resgate de animais. A maioria está ferida e muito traumatizada. É uma situação terrível. Os casos mais que dobraram de 2020 para 2021", explica.

E, mesmo com mais pedidos de ajuda, Caio enfatiza que a ONG não tem recebido praticamente nenhuma doação. "Fica tudo por nossa conta. E a ração e os remédios estão cada vez mais caros. São muitos animais, e precisamos bastante. Ontem (nessa quinta-feira, 18),  mesmo tivemos que resgatar outro porque não tinha jeito, estava no meio da avenida Cristiano Machado e poderia ser atropelado", cita. Ao todo, são quase 20 cães que vivem em uma casa mantida pela ONG no bairro Pompeia, na região Leste de Belo Horizonte.

Mudança de endereço

Um pequeno recado no elevador de um prédio no bairro Floresta, também na região Leste, dava uma verdadeira aula de solidariedade logo no primeiro dia de fechamento em Belo Horizonte em 2020. Por conta da doença desconhecida e dos riscos de transmissão, o engenheiro ambiental Arnaldo Cambraia, de 36 anos, ofereceu-se para fazer compras de supermercado para idosos durante a quarentena. 

Um ano depois, Arnaldo deixou a capital mineira para viver em Barreiras, cidade do interior da Bahia. "Mudamos em janeiro deste ano. Como estava sem emprego, acabei vindo para cá depois que minha noiva arrumou um trabalho para mim", conta. Em setembro, o engenheiro ficou desempregado e, mesmo após procurar muito, não encontrou nenhuma oportunidade. "Foi um período muito tenso e de aperto. Essa questão de abrir comércio, fechar, e, depois, abrir novamente causa uma insegurança muito grande. E não vejo solução neste momento; a vacina praticamente não chegou", finaliza.

Minientrevista com Estevão Urbano, infectologista do Comitê de Enfrentamento da Covid-19 

Na última coletiva, o senhor disse que BH não é uma ilha. A condução da pandemia em outras cidades do Estado contribuiu para esse cenário? Com certeza. O Brasil talvez seja o pior país do mundo na condução da pandemia, cada um fazendo uma coisa, pouca gente seguindo a ciência, mas, infelizmente, influenciado por uma conduta não científica do presidente e do Ministério da Saúde. O ministério que, durante uma pandemia, a crise sanitária mais grave da história do Brasil, teve quatro ministros. Então, se você tem uma coisa razoavelmente bem feita em Belo Horizonte e tem uma malfeita logo aqui do lado, e como não existe um muro entre essas cidades, certamente sua medida se torna menos efetiva. Então, nós poderíamos ter menores números em Belo Horizonte se tivéssemos um país com medidas homogêneas, simétricas, concatenadas, e as outras cidades também ganhariam com isso. Agora, o Brasil brincou com a pandemia de uma forma geral. É um vírus com conteúdos genéticos de RNA há décadas. E eles se multiplicam muito rapidamente, e  pode haver durante uma multiplicação um tipo de mutação. Então, essa mutação aumenta a chance, de uma forma matemática, exponencial de causar uma mutação ao acaso e aleatória, quanto mais o vírus se multiplica. Nós deixamos o vírus se multiplicar. Então, era esperado que um dia uma mutação aparecesse, a chamada variante. E, infelizmente, a variante é mais agressiva e transmissível. Eventualmente, há mutações benéficas para a população e piores para o vírus, mas esta não é. E, hoje, nós somos o epicentro do mundo, o país que está sendo vigiado no planeta. Mais de cem países já proibiram a entrada de brasileiros. Isso não é por acaso. Nós plantamos e colhemos. Então, a pandemia foi muito mal gerida em nível nacional. Independentemente de ideologias políticas, estou fazendo uma análise científica, não tem qualquer conotação política. Erramos e acertamos em Belo Horizonte. Não quero dizer que somos protagonistas ou os donos da verdade, até porque tudo o que fizemos foi baseado em aplicações, artigos, experiência de outros países. Mas, pelo menos no que erramos, erramos tentando fazer o que a ciência manda, e não o contrário.

 E a população na capital? Fez sua parte? Acho que fez. Agora, não tem como ter 100% de adesão, até porque você tem uma condução caótica em nível nacional. Agora, eu diria que a maioria das pessoas aderiu, contribuiu. As pessoas que aderiram no início e deixaram de aderir em um segundo momento é porque estavam desgastadas emocionalmente, com um ano de pandemia, ou dilaceradas do ponto de vista econômico, principalmente depois que o auxílio emergencial acabou. Essas pessoas se sentiram desamparadas e não deixaram de contribuir por negacionismos, mas pelas circunstâncias que um ano de pandemia impõe. Depois que ele acabou, algumas pessoas tiveram que ir para a luta. Mas podemos dizer que Belo Horizonte teve uma adesão extremamente alta e uma compreensão cidadã muito grande sobre o que é uma pandemia e cooperar. 

Caso o ritmo de vacinação estivesse melhor, estaríamos vivendo essa situação? Eu acho que pode piorar. A situação é muito caótica. Infelizmente, não sei se já chegamos ao fundo do poço. As vacinas são absolutamente fundamentais, e um dos grandes erros da condução do programa de combate à pandemia foi a demora no reconhecimento da importância da vacina. Tem caído a mortalidade naquela faixa de pessoas que já se vacinaram, estão reduzindo a sua frequência em hospital. A vacina está funcionando, e os profissionais de saúde diminuíram muito o adoecimento com sintomas graves.

Linha do tempo da pandemia

Primeiro fechamento: 20 de março a 25 de maio de 2020

Apenas serviços essenciais, como farmácias, clínicas e hospitais, puderam funcionar no período. Atividades administrativas essenciais e estabelecimentos ligados à manutenção de equipamentos e infraestrutura também ficaram liberadas.

Situação da pandemia na época: 20 casos confirmados de coronavírus

Segundo fechamento: 29 de junho a 6 de agosto de 2020

Após duas fases de flexibilização de algumas atividades comerciais, cidade voltou a ter restrições por conta do aumento da transmissão

 Situação da pandemia na época: 19.112 casos confirmados e 482 óbitos, além de 3.189 casos em acompanhamento

Terceiro fechamento: 11 de janeiro a 31 de janeiro de 2021

A prefeitura permitiu que parques e praças continuassem abertos

Situação da pandemia na época: 70.223 casos confirmados e 1.956 óbitos, além de 4.599 casos estavam em acompanhamento

Transmissão da Covid-19: 1,04

Ocupação UTI: 86,5%

Quarto fechamento: 6 de março até atualmente

Foram consideradas as mesmas atividades essenciais do primeiro decreto, e a prefeitura impediu a realização de cultos e missas

Situação da pandemia: 116.419 casos confirmados e 2.815 óbitos, além de 5.827 casos em acompanhamento

Transmissão da Covid-19: 1,16

Ocupação UTI: 81%