A confissão foi registrada em entrevista à escritora e dramaturga Edla Van Steen. “Tudo o que diz respeito a mim detesto reviver. Prefiro não me lembrar de nada do meu passado”, afirmou João Cabral de Melo Neto. “Ele detestava rapapés e homenagens. A vida passada revivia em sua poesia”, diz sua filha, a escritora Inez Cabral.
Afeito ou não a celebrações, é certo que os versos cabralinos serão lembrados de forma efusiva em 2020, ano que marca o seu centenário. Estão previstos uma fotobiografia, um livro de entrevistas e dois exemplares reunindo a obra completa na poesia e os textos em prosa. Uma coletânea bilíngue de poemas português-espanhol será lançada na Feira do Livro de Quito.
Detentora dos direitos autorais, a Alfaguara ainda finaliza os trâmites para lançar a obra completa, reunida pela Nova Aguilar em 2003, quatro anos após a morte dele, e fora de catálogo. Segundo o publisher Marcelo Ferroni, textos em prosa serão reunidos em outro exemplar. “Nosso desejo era ter um pedacinho da obra dele, que não está no nosso catálogo”, afirma Maria Amélia Mello, da Autêntica, se referindo à propriedade intelectual da Alfaguara. Ela é a responsável por “Recife/Sevilha – Conversas com João Cabral de Melo Neto”.
A saída para driblar impedimentos legais veio de uma conversa com Bebeto Abrantes, diretor do documentário “Recife/Sevilha – João Cabral de Melo Neto” (2003). “Ele me falou que uma parte da entrevista estava inédita”, diz Mello. No filme, depoimentos de amigos, familiares e do próprio autor explicam a relação dele com Sevilha, onde foi diplomata (de 1956 a 1964). Em um trecho, Abrantes questiona: ‘“Por que você sempre frisa a concretude da fala espanhola?’. A literatura espanhola é a mais concreta que há. Foi o que me seduziu”, responde ele.
“Cabral sofreu grande influência da Andaluzia, em temas e incorporação de linguagem”, destaca o crítico Antônio Carlos Secchin. O diálogo com a cultura de lá intensificou nele um processo que começara em “O Engenheiro” (1945), com a necessidade de reafirmar uma nova dimensão do discurso lírico, calcada na objetividade, distante do executado em “Pedra do Sono” (1942), seu primeiro livro.
O estilo coloquial encontra diálogo com a poesia ibérica “a um tempo severa e picaresca”, que acentuou em Cabral “a tendência de apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o horizonte da vivência nordestina”, aponta o crítico Alfredo Bosi, que põe o poema “Morte e Vida Severina” (1955) como resultado disso.