Lançamento

Dead Fish: álbum com raridades mostra coerência musical e política da banda

“Lado Bets, que já está nos aplicativos de música, percorre 16 anos da trajetória do grupo capixaba em 10 faixas pesadas, críticas e intensas

Por Bruno Mateus
Publicado em 17 de julho de 2020 | 12:38
 
 
 
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“Às vezes, não consigo parar dez minutos para trocar uma ideia”, diz Rodrigo Lima. Em quarentena há mais de 100 dias, o vocalista do Dead Fish concentra suas atenções na filha pequena, de 4 anos, que demanda cuidados próprios de uma criança que não tem a real dimensão do período caótico em que vivemos. “Ela fica nervosa, a gente tem que estar juntinho. Tenho mandado todas as minhas energias para segurar a onda dela, ao mesmo tempo seguro a minha. A gente pinta junto, ouve música, ela agora ganhou tecladinho”, comenta.

Quem conhece o agitado Rodrigo ou já foi a um show do Dead Fish deve imaginar o quanto estar longe dos palcos afeta o músico. As duas lives realizadas no período da pandemia descarregaram um pouco da vontade de tocar, mas nada como pular e gritar em frente a uma plateia tão frenética quanto o vocalista.

O som do Dead Fish não cabe em uma live, ele é intenso e vigoroso demais para acontecer na sala de uma casa ou em um estúdio vazio e sem graça. A música, claro, faz parte da rotina de Rodrigo - ele tem escutado Tom Waits, Leonard Cohen e o conterrâneo Sérgio Sampaio. Quando menciono que ele está em home office, o compositor logo corrige, com bom humor: “Estou desempregado (risos). Eu tinha uma reservinha (de dinheiro), que já está indo embora. Não estou legal, não”.

Rodrigo é único remanescente da formação original do Dead Fish, grupo que nasceu em Vitória, no Espírito Santo, há quase 30 anos e, desde então, construiu uma trajetória consistente e coerente e se tornou um dos maiores representantes do hardocore brasileiro. Boa parte desse caminho ganha um registro importante tanto para o grupo quanto para quem gosta do som da banda. Raridades, sobras de estúdio, versões, singles e faixas escondidas estão entre as dez faixas que dão forma a “Lado Bets”, disco que chegou aos aplicativos de música (Spotify, Deezer, YouTube Music, Apple Music e outros) nesta sexta-feira (17).

Dez faixas e uma porrada só

O álbum, que, a princípio, seria um EP com quatro faixas, começa com “Décimo Andar”, gravada em 2005 para um projeto da MTV e uma das primeiras a entrar na lista que Rodrigo e o produtor Rafael Ramos começaram a reunir durante a quarentena. A música, um rompante de um minuto, é emblemática: fala do apartamento em que Rodrigo morou sozinho pela primeira vez em São Paulo, onde o capixaba vive desde 2004. “Foi interessante ver a letra depois de tanto tempo. Escrevi quando entrei pela primeira vez no apartamento”, ele lembra.

O que vem na sequência é puro e cru Dead Fish. Bateria acelerada, riffs rápidos e versos diretos e debochados de Rodrigo em um vocal falado com raiva e indignação. “Ele é limpinho/ Toma banho e penteia o cabelinho/ Faz a barba e toma iogurte/ Paga seus impostos em dia/ Fala baixo e respeita o vizinho/ Respeita a polícia militar/ Diz trabalhar feito um camelo e odiar os nordestinos””, diz a letra de "Roubando Comida”, de 2018, que menciona sempre um “cidadão de bem”.

A inspiração da música estava bem perto de Rodrigo: “Eu moro na região de Perdizes, né? Aqui é dicotômico. É um bairro de velhos neofascistas conservadores, mas estou na rua onde supostamente os Mutantes foram fundados, uma rua pra cima tem uma loja de discos maravilhosa e tem também um teatro no fim da rua. Aqui teve xingo em mulher e em gente de camisa vermelha”.

Algumas faixas ganham o universo digital pela primeira vez - é o caso de “A Recompensa”, de 2006, e “Dêem Nome Aos Bois”, lançada em 2013. Outras raridades são “Múmia” e “Michel Oghata”, gravadas em 2006, que acabaram não entrando em “Um Homem Só”, álbum do mesmo ano, e foram finalizadas em 2010, quando fizeram parte de um compacto de quatro faixas que marcou uma dobradinha do Dead Fish com o Mukeka Di Rato. Da safra mais recente da banda, “O Outro do Outro” também está em “Lado Bets”. A faixa, mixada por Bill Stevenson, estava “escondida” na versão em CD de “Ponto Cego”, álbum lançado em junho do ano passado.

Com letra em inglês, “Maniac Nonlinear”, de 2004, fecha o disco com uma ode ao grupo de hardcore nova-iorquino Quicksand, além de a guitarra em certo momento da música fazer referência ao clássico “Kashmir”, do Led Zeppelin. “Lado Bets”, lançado pela gravadora Deck, vai ganhar edições em vinil e k7 e, num segundo momento, também em CD.

O álbum é um importante registro tanto para a banda quanto para os fãs: percorre uma trajetória coerente musical e politicamente, é pesado, com riffs rápidos de guitarra, baterias zunindo e o baixo marcado. As letras escancaram o desprezo pelo conformismo conveniente, a indignação, a crítica feroz às desigualdades e mazelas da sociedade e à mesquinhez humana. Direto e sem firula, o Dead Fish, que ainda tem Marcos Melloni (bateria), Ric Mastria (guitarra) e Igor Moderno (baixo) na formação, mais uma vez vai ao ponto e deixa o recado.

Discurso político

Naturalmente, o cunho político das letras do Dead Fish permeia o álbum e mostra uma coerência no discurso. Segundo Rodrigo, é espontâneo que “Lado Bets” reflita o posicionamento da banda ao longo das últimas décadas. “Dêem Nome Aos Bois”, por exemplo, foi escrita em 2013, no auge das discussões sobre a Comissão da Verdade, instalada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) para investigar os crimes e violações de direitos humanos cometidos durante a ditadura  militar (1964-1985). “A galera estava relativizando e criminalizando criminalizar os responsáveis”, afirma Rodrigo. “Estamos relembrando o território onde a gente pisou nos últimos 16 anos. Aparentemente, parece ser uma reafirmação, mas não é. É apenas uma recordação do que sempre fizemos”, acrescenta.

Sobre Jair Bolsonaro, sempre criticado por Rodrigo em discursos no palco ou em letras que não precisam citar o nome do presidente para se fazerem entender, o vocalista do Dead Fish lamenta que ele ocupe a Presidência da República e faz coro a artistas, entre eles Chico Buarque e Gregorio Duvivier, e personalidades como o ex-jogador e comentarista Walter Casagrande, que pedem o impeachment de Bolsonaro em um documento organizado por entidades sindicais: “Se precisar assinar eu assino. Ele é um avatar dessa elite tosca, dessa burrice, desse fascismo voluntário”.

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