Um antigo ditado africano recorda que, até o leão aprender a escrever, a história exaltará a versão do caçador. A frase ecoa a tarefa em que o escritor Laurentino Gomes fincou suas garras com a escrita da trilogia sobre a escravidão, que ele começa a publicar agora.

O monumental esforço jornalístico, resultado da leitura de 200 livros e seis anos de pesquisas, começa a chegar às prateleiras com a publicação do primeiro volume, dedicado ao período compreendido entre o primeiro leilão de escravos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares.

Numa escrita esmerada, repleta de dados, números e descrições minuciosas de toda atrocidade e humilhação possível pela qual um ser humano pode passar, o jornalista envolve o leitor em uma viagem que relata de que forma a escravidão surgiu no mundo e como essa triste mancha encontrou em terras brasileiras seu território oportuno.

"Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção de nossa identidade”, aponta o livro em certo momento. Esse parece ser um dos objetivos da obra: provocar a reflexão sobre como um país constituído e sangrado pela mão de obra escrava tornou-se uma nação que se acostumou a banalizar massacres.

Gomes dá uma noção do tamanho da tragédia ocorrida por aqui. “O Brasil foi o maior território escravista da América. Nós recebemos quase 5 milhões de cativos africanos, o que dá 40% dos 12,5 milhões que embarcaram para as Américas”, explica o autor. “O Brasil foi o país que mais resistiu a acabar com a escravidão, a acabar com o tráfico negreiro, e todos os nossos ciclos econômicos foram alimentados e mantidos pela escravidão. O Brasil foi construído por mão de obra escrava”, assegura.

Obviamente que o Brasil foi protagonista de um jogo jogado em vários lugares do mundo e com interesses mastodônticos envolvidos. Basta lembrar que foram 35 mil navios negreiros que cruzaram o oceano Atlântico em direção à Europa e a vários pontos da América, conforme pontua a comovente narrativa da obra. Seus porões estavam lotados de negros africanos escravizados que eram retirados à força de suas comunidades. A maioria dessas pessoas era obrigada a passar por batismo em uma nova religião, a aprender outra língua, mudar sua maneira de vestir, de se comportar e até mudar de nome.

A Árvore do Esquecimento foi um desses lugares de apagamento da identidade dos negros. Fica na cidade de Ajudá, no Benin, onde havia a principal fortificação de tráfico de escravos portugueses e brasileiros. Ali, atualmente, fica a porta do não retorno da Unesco, em memória dos africanos que partiram de suas terras.

“Ali as mulheres cativas tinham que dar sete voltas em torno da árvore, e os homens nove, num ritual religiosos que significava o apagamento da memória, deixando para trás todas as suas raízes culturais, e embarcar em um navio numa experiência assustadora e traumática, com índices gigantescos de mortalidade”, revela o escritor.

Durante os 350 anos em que a escravidão foi vigente, cerca de 1,8 milhão de pessoas morreram durante a travessia do Atlântico. “Isso dá 14 cadáveres em média lançados ao mar todos os dias durante três séculos e meio, ao ponto de haver relatos na época de que isso mudou o comportamento dos cardumes de tubarão, que passaram a cercar e acompanhar os navios negreiros em busca de comida humana que seria jogada ao mar. Eu fiquei assustadíssimo quando li isso”, relembra o autor. Era tanta gente morta que os navios eram chamados de “tumbeiros”, ou seja, tumbas flutuantes.

O impacto de esmiuçar uma carga tão fatigante de informação causou impactos diretos no escritor, que visitou oito países africanos, além de ter morado em Portugal durante cinco meses e visitado Estados Unidos, Inglaterra e as principais localidades brasileiras envolvidas na escravidão. 

“Na África, tive uma crise de choro, uma coisa convulsiva, quase uma catarse, ao entrar num porão úmido e com portas fechadas onde ficavam mulheres escravizadas à espera da chegada dos navios negreiros. Elas ficavam ali por semanas, muitas morriam e tinham filhos. Acho que ninguém consegue falar da escravidão e sair incólume dessa experiência”, desabafa o jornalista.</CW>
O trabalho de Gomes também questiona como o Brasil, sendo o maior território escravista da América e a nação que mais resistiu a acabar com a escravidão, ainda não debateu o tema de forma honesta. “Tudo o que fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas, mas, principalmente, a maneira como nos relacionamos com essas raízes é um assunto importante e controvertido, quase como uma ferida aberta que se recusa a cicatrizar”, avalia. “Não temos um grande museu nacional da escravidão ou da cultura afro-brasileira. Isso é uma lacuna muito séria no nosso entendimento a respeito da escravidão”, conclui o autor.

A vista grossa de Tiradentes e aliados

Considerado pelo autor um território escravista por excelência, Minas Gerais teve papel de relevância na chaga da escravidão. O tema será mais trabalhado por Laurentino Gomes no segundo tomo.
Com a expansão das fronteiras brasileiras e o avanço do ciclo da mineração, a população brasileira passaria de 300 mil pessoas no século XVII para 3 milhões nos idos de 1808 – 2 milhões eram cativos, ou seja, escravos.

“Mas em Minas Gerais houve algo diferente, uma escravidão urbana com alto número de alforrias, a presença de irmandades religiosas que tinham papel importante na inserção social dos escravos”, explica o autor.

Havia uma espécie de acordo tácito em toda a sociedade brasileira que colocava a escravidão em posição de aceitação até por religiosos, que também tiveram escravos. Idem aos Inconfidentes, que, mesmo munidos de ideais iluministas, tinham cativos. “Era uma contradição, pois até Tiradentes tinha seis escravos. A Inconfidência passou ao largo da questão da escravidão porque mexia com interesses de alguns de seus principais apoiadores”, afirma o jornalista. 
 

Entrevista com Laurentino Gomes

Por que você decidiu escolher esse tema da escravidão?

Essa nova trilogia sobre escravidão no Brasil foi consequência direta do meu trabalho anterior, a trilogia sobre o século 19 (1808, 1822 e 1889). Na primeira eu tentei explicar o Brasil do ponto de vista burocrático, institucional e legal, a construção do país depois do rompimento dos vínculos com Portugal, desde a chegada da corte até a proclamação da República, e acho que isso ajuda a entender bastante o país que temos hoje, a desigualdade social, o toma lá dá cá em Brasília, uma série de características que marcam o Brasil, mas também a capacidade de ocupar o território, um país grande, integrado e de dimensões continentais. Mas percebi que isso não era suficiente. Se você quiser realmente entender a identidade nacional brasileira hoje, os desafios que temos no presente e nos aguardam no futuro, é preciso ir mais fundo em busca de um código genético nosso, aí eu identifico a escravidão como o fato, o episódio, o fenômeno mais importante de toda a história do Brasil. Explico logo na introdução: tudo o que fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas, mas principalmente com a maneira como nós lidamos e nos relacionamos com essas raízes. É um assunto importante, controvertido, é pesado, politicamente delicado hoje, quase como uma ferida aberta que se recusa a cicatrizar, então é importante olhar para ela, cuidar dela, entender porque a ferida existe. Minha contribuição é incluir algum elemento de racionalidade nesse debate que hoje eu julgo que está muito polarizado e contaminado do ponto de vista ideológico. Ninguém ouve ninguém e todo mundo grita sua opinião, e isso não vai resolver o problema.

Quanto tempo durou a sua pesquisa?

Foram seis anos, mas eu já vinha pesquisando sobre escravidão quando publiquei a trilogia anterior. Você não consegue olhar paro o Brasil do século 19 sem tratar da escravidão, mas essa pesquisa específica eu comecei depois de publicar o livro 1889, em 2013. De lá pra cá eu li cerca de 200 livros sobre esse assunto, tem uma bibliografia muito boa e complexa sobre o assunto, tanto no Brasil quanto lá fora. Morei nos EUA durante algum tempo, depois eu botei o pé na estrada para fazer o trabalho de reportagem. Eu sou jornalista e gosto de ir em busca de informações que curiosamente estão presentes nos locais em que as coisas aconteceram, então eu percorri as principais regiões escravistas do Brasil, passei 5 meses em Portugal fazendo viagens à África, visitei 8 países africanos, fui à Inglaterra, a Londres, fui a Liverpool que foi um grande porto fornecedor de navios, mercadorias e créditos financeiros para compra de escravos, e o resultado é esse livro que combina pesquisa histórica com linguagem jornalística e reportagem.

O que mais te chamou atenção durante a apuração?

A escravidão não foi só africana. Antes de escravizar os africanos aos milhões,  o Brasil foi o maior território escravista da América. Nós recebemos quase 5 milhões de cativos africanos, isso dá 40% dos 12,5 milhões que embarcaram para as Américas. O Brasil foi o país que mais resistiu a acabar com a escravidão, a acabar com o tráfico negreiro, e todos nossos ciclos econômicos foram alimentados e mantidos pela escravidão. O Brasil foi construído por mão de obra escrava. Agora o que me chamou atenção é que não foi só a escravidão negra. Logo no começo, especialmente no século 16, os portugueses fizeram um esforço muito grande para escravizar os indígenas. A escravidão indígena foi enorme no Brasil, centenas de milhares de índios foram escravizados, embora esse número não se saiba exatamente no detalhe, mas por que não deu certo? Por duas razões: primeiro que os índios começaram a morrer aos milhões em função das doenças que chegaram junto com os colonizadores europeus. até a chegada da corte de Dom João no Rio de Janeiro, o Brasil matou em média 1 milhão de indígenas a cada 100 anos, foi um grande massacre, como mostro no livro. Uma segunda razão, mostrada pelo historiador Felipe de Alencastro no livro “O trato dos viventes”, é que não havia um mercado organizado de fornecimento de mão de obra cativa no Brasil, ao contrário da África, onde a escravidão já era uma coisa ancestral, parte da cultura africana, já havia rotas, compradores, fornecedores, portos de embarque, preços definidos, e aí os portugueses recorreram à escravidão africana, mas é uma grande tragédia humanitária, uma coisa assustadora. Acho que no Brasil nós criamos alguns mitos a respeito de nós mesmos. Um desses mitos é justamente sobre a escravidão, de que foi branda, benévola, patriarcal, que os negros africanos não foram tão maltratados quanto no resto da América, e que disso teria resultado também numa democracia racial no Brasil. Acho que isso tudo é um mito perigoso, porque encobre e disfarça o problema, não nos faz refletir devidamente sobre ele. Mas a escravidão está aí, é uma coisa presente no nosso dia a dia e precisamos realmente estudar esse assunto.

No livro você informa que há mais escravos nos dias atuais do que nos séculos passados.

Na instituição inglesa Anti Slave Society, herdeira do movimento abolicionista do século 17, que é atuante e faz um monitoramento de trabalho análogo da escravidão no mundo inteiro, eles dizem que existem hoje no mundo cerca de 40 milhões de pessoas em condições semelhantes à escravidão antiga, ou seja, impedidas de ir e vir, sendo traficadas de um território para outro, trabalhando em condições desumanas, com salários pífios, quando recebem alguma coisa, e esse número é assustador, é quase 4 vezes mais do total de africanos que chegaram às américas em três séculos e meio, ou seja, a escravidão não foi embora. Eu tenho uma teoria particular de que nós estamos rodeados de escravos todos os dias. Quando você olha para a história você vê que a escravidão sempre existiu na história humana. Onde houve ser humano, houve escravidão. Me pergunto: se houver daqui a pouco uma grande crise ambiental ou tecnológica, como a que devastou os dinossauros milhões de anos atrás, será que não voltaríamos a ser escravocratas como nós sempre fomos? É uma pergunta. A escravidão continua presente na nossa realidade, seja na forma de máquina, de soluções tecnológicas, há escravos que não se rebelam nem formam quilombos, não fogem nem dão trabalho, mas também a escravidão humana, especialmente no Brasil, onde o trabalho em situações análogas à escravidão é um problema seríssimo.

Então a presença de escravos é permanente em nossa história?

Nosso maior africanista, o historiador Alberto da Costa e Silva, fez revisão e comentários no meu livro. Ele diz que a escravidão é assunto de todos nós brasileiros, ou seja, não apenas da comunidade afrodescendente. Todos nós brasileiros que estamos vivos hoje temos a ver com a escravidão, ou os poucos índios que sobraram e foram dizimados pela escravidão nos séculos 16 e 17, ou os afrodescendentes que são herdeiros da escravidão africana, descendentes de quem chegou aqui como cativo, ou brancos descendentes de portugueses que foram senhores de escravos, ou mesmo, que é meu caso, descendentes de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil no final do século 19 para substituir mão-de-obra escrava na colheita de café no interior de São Paulo, esses foram os meus bisavós. Então a escravidão é um assunto que interessa ou deveria interessar a todos os brasileiros.

Sendo um autor branco, em algum momento você teve receio de ser alvo de críticas por escolher um tema da negritude?

Vivemos hoje numa sociedade muito sensível, tudo dói, a esquerda, a direita. A questão racial voltou a ser tratada de uma forma muito crua na forma de preconceito nas redes sociais. A comunidade afrodescendente procura se defender como pode, mas é muito difícil tratar dessa questão. Observei o seguinte: seria legítimo que apenas um escritor negro pudesse tratar da escravidão? Percebi que não. Existem diferentes olhares sobre a escravidão, existe um olhar negro, um olhar branco e um olhar atento, onde procuro me enquadrar. Claro que o fato de ser um homem branco limita meu olhar, minhas raízes culturais impedem que eu expresse em toda sua profundidade e sua dor a experiência negra pela qual eu nunca passei, mas a escravidão é assunto meu sim, porque deveria ser assunto de todos os brasileiros. É um assunto tão importante e fundamental escrever, pesquisar e discutir que todo mundo que tem uma contribuição a dar deveria se pronunciar. É o que estou fazendo. Agora faço questão de explicar que não é ‘a’ história da escravidão no Brasil, é ‘uma’ história entre muitas possíveis narrativas.

Quais os grandes personagens que você encontrou durante o trabalho?

Fui topando com personagens curiosos. Na África me encontrei com o patriarca da família De Sousa, Marcelino Norberto de Sousa, que é descendente de Francisco Félix de Sousa, um mulato baiano que foi para o Benim e se tornou dos grandes traficantes de escravos para o Brasil. Hoje ele tem uma numerosa descendência espalhada por vários países africanos como Nigéria, Benim, Togo, Gana, Costa do Marfim, é um personagem fascinante sobre o qual vou escrever mais no terceiro volume da trilogia. O príncipe Infante Dom Henrique, o navegador, que descobri que navegou muito pouco, se é que navegou, mas foi o patrono do tráfico de escravos no Atlântico, ele que lança as bases para esse negócio como seria nos 350 anos seguintes. Têm personagens interessantes e importantíssimos como o Zumbi dos Palmares, a Rainha Ginga, africana que enfrentou e infernizou os portugueses em Angola no século 17, uma mulher muito forte que comandou milhares de guerreiros e a certa altura da vida ela passou a se vestir como homem e tinha harém de homens que se vestiam de mulher. Uma personagem incrível e muito forte. Escrevo sobre cada um deles no meu livro.

Qual o impacto emocional a partir de uma pesquisa sobre fatos tão chocantes?

Pesquisar e escrever sobre a escravidão foi para mim uma experiência, do ponto de vista emocional, muito impactante, muito profunda. Eu tinha pesadelos quando estava lendo sobre uma viagem num navio negreiro. O índice de mortalidade era altíssimo, morreram 1,8 milhão de pessoas na travessia do Atlântico durante 350 anos. Se dividir pelo número de dias dá 14 cadáveres em média lançados ao mar todos os dias durante três séculos e meio, ao ponto de haver relatos na época de que isso mudou o comportamento dos cardumes de tubarão, que passaram a cercar e acompanhar os navios negreiros em busca de comida humana que seria jogada ao mar. Eu fiquei assustadíssimo quando li isso. Passei por experiências muito fortes também. Na África fui visitar um castelo na costa de Gana e o guia me mostrou um porão úmido e frio na rocha nua, muito escuro onde ficaram as mulheres escravizadas à espera das chegadas dos navios negreiros, e ficavam lá semanas e até meses. Muitas morriam ou tinham filhos lá dentro daquele porão. Ele me perguntou se eu queria ficar lá dentro sozinho, eu disse que sim, ele fechou a porta, ficou tudo escuro,  eu tive uma crise de choro, uma coisa convulsiva, quase uma catarse, então foram experiências que me tocaram muito, mas acho que ninguém consegue falar da escravidão e sair impávido, incólume, dessa experiência. Sou muito grato por ter sido tocado tão profundamente por ela. Acho que isso reflete no meu trabalho também.

Como era o interior desse navios durante a travessia do mar?

O navio negreiro era uma mistura de embarcação, uma fortaleza e prisão. A população ficava toda armada, às vezes atrás de barricadas, porque havia ameaça de rebelião. Os escravos viajavam parte do percurso acorrentados nos porões dos navios que ficavam fechados à noite, tudo muito escuro, extremamente desconfortável, as condições de higiene eram péssimas, podia ser açoitado, havia açoites públicos ou mesmo execuções para servir de exemplo aos outros passageiros. O próprio embarque no navio era uma experiência assustadora para os africanos. Eles não sabiam o que ia acontecer do outro lado do oceano, muitos deles nunca tinham visto o mar, pois tinham vindo do interior do continente em longas caminhadas. Havia muita mortalidade no percurso entre as zonas de captura e os locais de embarque. Em Angola havia um temor de que os africanos seriam devorados pelos europeus, que imaginavam que eles eram canibais. Eles eram tratados como se fossem animais, mercadorias humanas, então era uma experiência traumática para os cativos africanos, mas também para a própria tripulação. Havia um índice de mortalidade enorme entre os marinheiros europeus na costa da África em função das doenças tropicais, febre amarela, malária, então o sonho de todo capitão de navio negreiro era embarcar o maior número de escravos o mais rapidamente possível e partir, ficar pouco tempo na costa da África, senão a população morria. O que fazia com que os fornecedores de cativos na África mantivessem fortes com escravos estocados. Quem tivesse grande número de escravos estocados vendia por menor preço para os capitães que estavam ansiosos por partir o mais rapidamente possível.

O Brasil foi o país que mais resistiu a acabar com o tráfico negreiro. Por qual motivo?

O Brasil estava viciado em escravidão. Tudo o que aconteceu no Brasil colonial, todos os ciclos econômicos, a construção de estradas, de cidades, a ocupação das fronteiras, tudo isso foi feito com mão-de-obra cativa, primeiro indígena e depois africana. Fomos o maior território escravista da América, com 5 milhões de escravizados. Chegou ao ponto no começo do século 19 que no Brasil todo mundo que não fosse escravo era dono de escravo, inclusive ex-escravos, negros forros, mulheres que tinham conseguido alforria que também compravam escravos, porque esse era o principal ativo econômico do Brasil até meados do século 19, até segunda metade. Chegou a um ponto que a pressão internacional se tornou muito grande, a Inglaterra, que era uma grande traficante de escravos até metade do século 18, se tornou abolicionista por razões religiosas, morais, políticas, éticas, filosóficas e assim por diante, diversas razões, e passou a pressionar os outros países a também acabar com o tráfico negreiro. O Brasil resistiu até onde pode. Chegou ao ponto em que as águas territoriais brasileiras começaram a ser invadidas por navios britânicos de guerra e bombardearam um forte em Paranaguá, no litoral do Paraná, que supostamente abrigava escravos ilegais, porque o Brasil aprovou uma lei em 1831 que formalmente acabava com o tráfico de escravos, sob pressão da Inglaterra, em troca do reconhecimento da Independência do Brasil pelos ingleses. Só que nunca entrou tanto escravo no Brasil num período tão curto como nesse, por isso se chamava uma lei pra inglês ver, era de faz de conta, não era pra valer. Aí chegou a um ponto que não havia jeito, a pressão se tornou tão grande, o Brasil se tornou um pária internacional e foi obrigado a fazer a lei Eusébio de Queiroz em 1850, que acabou com o tráfico de escravos, mas ainda durou mais 40 anos até 1888 para finalmente acabar com a escravidão. Foi o último país da América a fazer isso.

Qual a participação de Minas Gerais no cenário retratado pelo seu livro?

Minas Gerais é o principal tema, personagem e cenário do meu segundo volume. Em 1694 houve a descoberta de ouro em Minas Gerais, aí começa o grande ciclo da mineração, de ouro, diamantes e outras pedras preciosas. Em consequência disso entraram no Brasil, no século 18, dois milhões de cativos, e é quando ocorre a expansão da fronteira brasileira em direção ao interior, Amazônia, Centro-Oeste. O Tratado de Tordesilhas foi formalmente revogado pelo Tratado de Madri de 1750, que reconheceu as fronteiras do Brasil mais ou menos como elas são hoje. No final do século 17 havia cerca de 300 mil pessoas no Brasil fora os índios, e em 1808 a Corte Portuguesa chegou e já eram 3 milhões. A população multiplicou 10 vezes em 100 anos, sendo que só de cativos africanos entraram dois milhões. Então Minas Gerais foi um território escravista por excelência, mas bem diferente das zonas de produção de açúcar do nordeste brasileiro. Em Minas surgiu uma escravidão urbana, o número de alforrias era muito elevado, a presença das irmandades religiosas, o meio de inserção social dos escravos e de seus descendentes era muito marcante, tem os quilombos. É uma escravidão que merece um volume à parte, que é o segundo volume.

No livro você conta sobre como a escravidão era aceita por todos, desde religiosos até a Inconfidência Mineira.

Minas Gerais é citada principalmente no final do primeiro volume, encerro falando da descoberta de ouro. Não podemos observar o passado com os olhos de hoje, seria o que os historiadores chamam de anacronismo, julgar o passado, seus personagens e acontecimentos, com referências de hoje. A escravidão era amplamente aceita por todo mundo, inclusive as ordens religiosas, os jesuítas, os carmelitas, os beneditinos, os franciscanos, todo mundo era dono de escravo. Havia muito ex-escravos negros alforriados ou crioulos, que eram escravos nascidos no Brasil, que também se tornaram donos ou traficantes de escravos, e o mais curioso é essa contradição entre as ideias iluministas do século 18 e alguns de seus personagens que, embora defendessem a ideia de que todos os seres humanos nasciam com direitos iguais, que incluíam a liberdade, eram também donos de escravos, como Tiradentes, que tinha meia dúzia de escravos no ano da sua morte. Quase todos os inconfidentes mineiros eram donos de escravos. a Inconfidência passa ao largo da questão da escravidão porque mexia com interesses de alguns de seus principais apoiadores. Nos Estados Unidos o Thomas Jefferson, autor da declaração da independência do país, era um grande senhor de escravos, assim como a maioria dos pais da independência americana, e alguns filósofos importantes da época eram acionistas de empresas de tráfico negreiro.

Explique como se deram os projetos de branqueamento da população brasileira.

Isso acontece especialmente no século 19, quando se tornou óbvio que o Brasil não conseguiria manter a escravidão para sempre. Aí nasce aqui também o movimento abolicionista, inspirado no movimento abolicionista inglês, mas também nesse momento são discutidos projetos de branqueamento da população. Era como se a escravidão fosse uma mancha que corrompia a forma como o Brasil poderia se constituir, e aí surge a ideia de trazer imigrantes católicos, europeus e ibéricos para branquear a população. Cito na abertura especialistas e médicos da época que chegam a fazer o cálculo de que se o Brasil continuasse a se miscigenar, dentro de 5 ou 6 gerações, não haveria mais negros. E uma coisa curiosa é que durante o século 19 se chegou inclusive a discutir a  hipótese do Brasil devolver parte de seus escravos à África, como EUA tentou fazer com a Libéria e a Inglaterra com Serra Leoa, um território na África para onde os escravos voltariam, como se os escravos fossem um bagaço de cana, que você mói, tira o açúcar e depois joga fora. Eu acho que essa ideia ainda está presente entre nós. Tem muita gente que acha que o Brasil deveria ser branco, europeu, e que a herança africana complica nossa vida. É preciso estar atento a essa ideia, elas não estão congeladas no passado e estão ainda presentes no imaginário, na psiquê de muitos brasileiros.

Qual a importância da campanha abolicionista e de Joaquim Nabuco nesse momento?

O Joaquim Nabuco é um personagem fascinante. Ele foi treinado pelo movimento abolicionista britânico, trabalhou em Londres, onde foi jornalista durante muito tempo, era um homem com formação cosmopolita, um bom escritor e historiador, mas ele representa a face branca do movimento abolicionista. É muito curioso que hoje, quando se fala em abolicionismo, todo mundo pensa em Joaquim Nabuco, mas existiam outros abolicionistas importantes e negros, como Luiz Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, que infelizmente não têm na história do Brasil o mesmo protagonismo do Joaquim Nabuco. É como se houvesse uma história branca da abolição, que deixa em segundo plano uma história negra. É bom refletir sobre isso.

Qual a importância de falarmos de escravidão ainda nos tempos atuais?

Acho que a escravidão como um todo é muito maltratada, ela não merece a atenção que deveria no estudo de história nos livros no Brasil em geral. É muito curioso que o Brasil, sendo o maior território escravista do Hemisfério Ocidental, nunca tenha tido um grande museu nacional da escravidão ou da cultura afrobrasileira, uma coisa que Estados Unidos tem, Angola tem. Se você visita os museus brasileiros, existem referências à escravidão, mas não com a importância que ela deveria ter. Acho que isso é uma lacuna muito séria no nosso entendimento a respeito da escravidão, mas existe uma narrativa branca, por isso eu encerro esse volume falando de uma guerra em andamento no calendário cívico brasileiro, onde dois personagens e duas datas se confrontam atualmente. De um lado o 13 de maio da Lei Áurea da princesa Isabel, e do outro o 20 de novembro da morte de Zumbi dos Palmares, dia da consciência negra. Não é uma guerra apenas por datas simbólicas, é pela própria memória da escravidão, como o Brasil vê, interpreta e encara essa escravidão e seu legado, porque lei Áurea e a princesa Isabel no fundo são personagens e datas de uma narrativa branca da história da escravidão, como se a abolição fosse uma vitória, um mérito, uma conquista dos brancos para livrar o Brasil de uma mancha que atrapalhava nossa imagem perante o mundo supostamente desenvolvido no final do século 19. Então é uma vitória contra a barbárie, a cor negra, o cativeiro, a escravidão entre nós, uma vitória da monarquia, da elite imperial contra essa mancha. Mas existe outra narrativa que é de enfrentamento, de resistência, de dor e de morte. Essa é a narrativa do Zumbi dos Palmares. Ele é um personagem muito difuso, há pouca informação objetiva sobre ele, até porque em Palmares ninguém nunca relatou nada. O que se sabe de Zumbi é pelos relatórios feitos pelas expedições militares que foram mandadas contra o quilombo. Se sabe pouquíssimo sobre Zumbi, mas ele é um símbolo que ainda está em construção. E dependendo da forma como essa guerra do calendário cívico brasileiro for decidida, também o legado e a memória da escravidão vão ser vistos no futuro.

A escravidão também se estendeu no Brasil mantida por pactos entre algumas elites, não foi?

O que aconteceu no Brasil no século 19 é que o país independente depois do grito do Ipiranga estava de tal forma tão viciado em escravidão que a elite escravagista brasileira, diante dos riscos envolvidos no processo de independência de guerra civil ou étnica, na qual os escravos armados para lutar numa guerra civil republicana poderiam se voltar contra a ordem vigente, os riscos eram tão grandes que a elite brasileira preferiu uma solução conservadora, que foi se reunir ao redor do herdeiro da Coroa de Portugal, o príncipe Dom Pedro II, futuro imperador, fazer a independência, romper os vínculos com Portugal, mas não mexer em nada na ordem social vigente. Então o Brasil manteve o analfabetismo, não investiu em educação, não fez reforma agrária, não distribuiu riquezas, não promoveu a cidadania e manteve, até onde pode, o tráfico negreiro e a escravidão. Esse é um pacto que se estabelece entre o trono e a elite escravista brasileira. Um apoiava o outro, e um não mexia nos interesses do outro. Quando esse pacto se quebra, no final do século 19, quando o trono brasileiro, submetido a pressões enormes, se torna também abolicionista, o edifício desaba, e não é à toa que no ano seguinte ocorre a proclamação da República, porque todo um pacto de poder feito no Brasil na época da independência cai por terra com a lei Áurea de 1888, então o resultado é a República no ano seguinte.

Por que Palmares era visto pelos conservadores como a maior das ameaças à civilização do futuro povo brasileiro, como citado no livro? Como se dava a resistência ao escravagismo brasileiro?

Palmares é importante por várias razões. A primeira é sua longa duração, sua capacidade inacreditável de resistência. Lá teria se formado por grupos de escravos fugitivos dos engenhos de açúcar da zona da mata da antiga capitania de Pernambuco, onde hoje é Alagoas, no final do século 16. Resistiu durante 100 anos a todas investidas de expedições militares portuguesas, brasileiras, holandesas, uma capacidade de resistência muito grande. Virou um símbolo e uma ameaça à ordem escravista vigente. É interessante que, no fim do século 17, o rei de Portugal, ou melhor, seu representante, o governador de Pernambuco, decidiu fazer um acordo com Palmares, pelo qual os quilombolas continuariam lá em paz, ninguém mais os atacaria, mas eles não poderiam ameaçar ninguém, invadir fazendas nem estimular outros escravos a fugir. o Padre Antônio Vieira, que era conselheiro do rei de Portugal, foi contra. Ele falou: não, manter Palmares é um perigo, porque vai servir de exemplo a todos os demais escravos brasileiros que vão se sentir no direito de se rebelar e fugir também. O padre defende a extinção de Palmares, e é o que acontece, no final do século 17, numa expedição liderada por uma figura impressionante, Domingos Jorge Velho, um bandeirante paulista que tinha passado toda a vida no sertão caçando e matando índio, mal falava português, a língua dele era tupi-guarani. E ele vai e massacra Palmares, e o resultado é a morte de Zumbi em 20 de novembro de 1695, em que ele foi morto, degolado, sua cabeça foi colocada numa caixa com sal grosso e levada pro Recife e espetada no alto de um poste no alto do Carmo para servir de exemplo a todos os demais escravos que porventura pensassem em se rebelar. Houve muitos quilombos, muitas fugas no Brasil. Em Minas o número de quilombos era muito grande no século 18, mas Manolo Garcia Florentino é um historiador que mostra que o número de escravos que fugiu, se rebelou e criou quilombos proporcionalmente é muito pequeno. A principal forma de resistência à escravidão não foi fuga nem rebelião, foi acomodação. Os escravos encontrando os poucos espaços que a ordem escravista oferecia para criar suas famílias, conseguir alguns benefícios, participar de irmandades religiosas, estabelecer laços de parentesco, de compadrio, que às vezes envolviam até seus próprios senhores, para conseguir alforria e algum espaço de reconstrução de sua identidade depois de passar pela experiência traumática de um navio negreiro. Esse vai ser o tema do segundo livro, alforria, família escrava, que são espaços de resistência que os cativos foram encontrando.

Houve escravos que conseguiram voltar à África, os chamados retornados. Como isso se dava?

Eu visitei no Benim uma rota dos escravos que fica na cidade de Ajudá, onde ficava o antigo forte português de São João de Ajudá, a principal fortificação de tráficos de escravos portugueses e brasileiros no golfo do Benim. E nessa rota, que são os últimos três quilômetros que escravos percorriam a pé entre a cidade em que eles eram arrematados geralmente em leilão até uma praia deserta de areias grossas batida por um vento muito forte e pelas ondas, um lugar muito desolado, onde hoje existe uma porta do não retorno da Unesco em memória dos que partiram, no meio dessa rota existe um local que, segundo a tradição do Benim, era a árvore do não retorno, ou melhor, a árvore do esquecimento. Ali os cativos tinha que dar 7 voltas as mulheres, 9 voltas os homens, num ritual religioso que significava um apagamento da memória. Deixava para trás todas suas raízes culturais, a sua família, seus parentes, sua vida, tudo ficava para trás. Ali eles embarcavam no navio, entravam no oceano, numa experiência assustadora e traumática, para reconstruir essa identidade na América, do outro lado do Atlântico, no Brasil, então era era uma experiência terrível. O índice de mortalidade era gigantesco. O historiador americano Joseph Miller calculou que, de cada dois cativos capturados no interior da África, só um sobrevivia depois de chegar ao Brasil. O restante morria ou nas rotas entre as zonas de captura e o litoral da África ou ou nos barracões em que eles ficavam à espera de embarque, ou nos navios negreiros ou também uma alta mortalidade depois da chegada ao Brasil nos três primeiros anos. O curioso é que existe um grupo de retornados na África, que foram depois da revolta do Malês, em 1835 na Bahia, uma revolta muçulmana, e muitos foram deportados, outros que retornaram por vontade própria depois da lei Áurea. Hoje existem grandes comunidades de descendentes de retornados brasileiros espalhados por vários países da África. Eles comemoram Carnaval, torcem pela Seleção Brasileira, tem o bumba meu boi, em Porto Novo, no Benim, visitei uma mesquita muçulmana com traços de igreja católica brasileira construída por mestres de obras muçulmanos que faziam igrejas na Bahia e ao voltar para Benim passaram a construir mesquitas com linha arquitetônica de igreja brasileira, então existe um resíduo muito grande de cultura brasileira levada para a África de volta pelos retornados.

Em termos financeiros, você afirma que o dinheiro envolvido na escravidão era o equivalente à indústria do automóvel nos dias atuais.

O comércio de escravos era uma atividade econômica, um grande empreendimento, um negócio gigantesco que envolvia bancos, financiadores, armadores, investidores, fabricantes de tecidos, de armas, de munição, de cachaça, de tabaco, de uma infinidade de mercadorias que vinham do mundo todo quase para compra de escravos. Envolvia tripulação de navio, agentes que percorriam o interior da África comprando escravos avulsos, outros que vendiam no atacado, tinham comissários que adiantavam a crédito no Brasil para que os fazendeiros comprassem e fossem pagando a prestações. Era um negócio realmente muito complexo e muito grande. Eu comparo hoje à indústria do carro e do petróleo, algo assim, então esse negócio era muito complexo e na África ele representava também uma atividade econômica importantíssima, que envolvia inclusive a própria elite militar africana que fornecia cativos para os europeus. Isso hoje é um assunto muito polêmico, aliás existe hoje um discurso racista hoje no Brasil dizendo que os portugueses não entravam na África, que eram os próprios africanos que escravizavam africanos, que negros escravizavam negros, e o que eu digo é que sim, havia, tanto como aconteceu com índios, entre os brancos, indianos, chineses, europeus do leste da Europa. A própria palavra escravo vem de eslavo, um povo branco de olhos azuis escravizado aos milhões e vendido na bacia do Mediterrâneo, no leste europeu. Isso mostra o tamanho do negócio de escravos na época.

O escravo era uma mercadoria humana passível de ser vendida, comprada, emprestada, usada como garantia de empréstimo bancário, poderia ser doada e usufruída no seu limite, não só em sua força de trabalho. No Brasil a própria sexualidade das mulheres escravas não lhes pertencia, o direito de reprodução pertencia ao seu dono.