Foi no dia 10 de junho de 2017 que o programador Eduardo Hanzo, 27, enquanto estava na fila de uma padaria em Boa Vista, Roraima, sem muito o que fazer, resolveu compartilhar com os seus então 200 seguidores do Twitter uma rivalidade entre duas mulheres que já existe há mais de 50 anos.
As protagonistas eram a sua avó e a vizinha dela, apelidada de "a Boi" -até meados dos anos 1990, conta Hanzo, a inimiga era chamada de vaca, mas então a sua avó decidiu que denominá-la desta forma era muito machista e resolveu renomeá-la para "a Boi".
A thread (sequência de postagens encadeadas no Twitter) com as histórias, absurdas e cômicas, das brigas entre as duas e do que elas são capazes de fazer para prejudicar uma a outra logo viralizou na rede social. Teve internauta que até pediu para a Netflix fazer uma comédia sobre o assunto.
Mas quem acabou vendo o potencial dramatúrgico da trama foi a autora Gloria Perez, que pediu para Miguel Falabella, com base na ideia original de Hanzo, transformar tudo aquilo em "Eu, a Vó e a Boi", série que estreia nesta sexta-feira (29), na Globoplay em seis episódios.
Para Falabella, a trama de ódio entre as duas personagens, vividas na tela por Arlete Salles (Turandot) e Vera Holtz (Yolanda, a Boi), é uma metáfora da situação atual, de "um mundo polarizado e dividido pelo rancor."
Para viabilizar a série, Falabella diz ter criado outros personagens e histórias. Hanzo afirma que deu também os seus pitacos e que até já cogita mudar de profissão e virar roteirista. "Estou levando um dia de cada vez, vamos ver o que vai acontecer", diz.
Na série, um dos personagens que foi criado é Roblou, neto em comum das duas inimigas, que é interpretado por Daniel Rangel, 24, conhecido pelo seu papel de Alex Fortes em "Malhação: Vidas Brasileiras" (2018).
O ator conta que, quando foi fazer o primeiro teste, não sabia que a trama tinha surgido de uma história da internet, mas se surpreendeu com o fato de seu personagem usar o recurso de quebra da quarta parede, isto é, em alguns momentos da trama ele olha para a câmera e fala diretamente com o telespectador -o uso dessa ferramenta foi muito elogiada pela crítica em "Fleabag", série de comédia da Amazon que ganhou os principais prêmios Emmy deste ano.
"Roblou faz esse papel de transmitir o olhar do público, de ficar chocado com algumas situações que acontecem na série", diz o ator.
Toda a história se passa na fictícia Tudor Afogado, uma rua cinza e monocromática inspirada no subúrbio carioca. Separadas por uma vala que materializa a aura de ódio e rancor entre as vizinhas, vivem frente a frente as famílias das duas. "Isso foi uma coisa que eu pedi o tempo inteiro: um lugar cinza, que não tem verde, porque é alimentado pelo rancor", diz Falabella.
Para ele, as personagens da série traduzem esse estranhamento que as pessoas em todo o mundo estão vivendo ao verem os desastres ambientais, sociais e a falta de empatia uns com os outros. "E elas [as personagens] traduzem isso de uma forma muito estranha: na violência. O ódio delas polariza toda a existência daquelas pessoas ali. O ódio chega a rugir literalmente embaixo da terra."
Falabella afirma também que "Eu, a Vó e a Boi" inaugura uma nova fase do seu trabalho, chamada por ele de "humor apocalíptico" e que reflete esse mundo cada vez mais "bizarro e solitário", em sua visão. Para ele, além de fazer rir, a comédia também coloca o dedo da ferida. "O humor é a melhor maneira de dizer as coisas para as pessoas, melhor até que a carta anônima", diz.
Depois de, segundo ele, fazer chanchada em "Sai de Baixo" (Globo, 1996-2002), sitcom em "Toma Lá da Cá" (Globo, 2007-2009), visitar a "melancolia engraçada" em "Pé na Cova" (Globo, 2013-2016), Falabella quis experimentar algo novo. E diz ainda que desejou fazer algo "muito louco mesmo, porque a gente não pode encaretar".
"Se não o mundo vai ficar mais estranho ainda, porque a arte, de certa forma, nos faz respirar, refletir e tentar melhorar. Sem arte fica insuportável. As grandes violências sociais vêm quando a arte é afogada, porque não há respiradouros. Enfim, a gente faz o possível", afirma.
A avó
Hanzo afirma que, em um primeiro momento, sua avó não gostou muito de saber que a sua história de inimizade com a vizinha serviria de inspiração para uma série da GloboPlay. "Ela ameaçou quebrar as minhas duas pernas, mas depois ela começou a gostar e está ansiosa pela série."
Já sobre "a boi", a vizinha, ele diz que nem tem como saber, já que afirma que as duas realmente vivem em pé de guerra. Hanzo ressalta que sempre foi fã de televisão e séries e que está muito feliz de fazer parte do que acredita ser um momento histórico: a transformação de uma trama que nasceu na internet em um produto feito por uma das principais produtoras de dramaturgia do país, a Globoplay.
O ator Daniel Rangel conta que o público tem se mostrado muito receptivo com a série. "Nunca fiz um trabalho com uma expectativa tão grande das pessoas. Elas comentam muito nas minhas redes sociais."
Todos torcem para uma segunda temporada. Questionada, a Globoplay afirma que ainda não há informações sobre uma continuação. Já Falabella é menos otimista. "Eles já desmontaram a cidade cenográfica da série. Mas quem sabe...", afirma.