Vítima da Covid-19

Filhos de Henfil e Betinho, homenageados em canção, reverenciam Aldir Blanc

Compositor é o letrista de “O Bêbado e a Equilibrista, hino de uma geração que lutou contra a ditadura e pediu pela volta de seus exilados

Por Bruno Mateus
Publicado em 04 de maio de 2020 | 15:24
 
 
 
normal

Foi a milhares de quilômetros do Brasil que Daniel Souza, então com seus 14 anos, conheceu “O Bêbado e a Aquilibrista”, em 1979, logo quando a música foi lançada na voz de Elis Regina. A clássica parceria de Aldir Blanc, levado, aos 73, pela Covid-19 na madrugada desta segunda-feira (4), com João Bosco, sobre um Brasil que cambaleava entre o medo e a esperança e sonhava com “a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu num rabo de foguete”, se transformou no hino pela Anistia e pela redemocratização naqueles tempos brabos da ditadura. Sociólogo e ativista dos direitos humanos, Betinho, o irmão do cartunista Henfil, vivia na Cidade do México, exilado com sua família.

Em conversa com o Magazine, Daniel ainda se lembra da primeira vez que o pai escutou a canção: “Primeiro, ele não acreditou. O Henfil ligou e disse: ‘Betinho, escuta aí.’ E ele foi ouvindo, ouvindo, até que chega a parte que fala ‘que sonha com a volta do irmão do Henfil’. Foi uma surpresa, ele ficou muito emocionado. Ali ele percebeu que não podia não voltar, ele teria que preparar a volta”.

Aldir Blanc, Betinho e Henfil eram muito próximos e a música eternizou essa forte relação que existia entre eles. “Aldir era muito especial, tudo que ele escrevia era maravilhoso”, pondera Daniel, que se diz um privilegiado por ter frequentado, com o pai, reuniões musicais na casa do compositor: “Ele fazia encontros com sambistas, nomes como Guinga, Moacyr Luz... Meu pai adorava música, e eu ficava ouvindo essas caras cantando”.

“Meu pai vivia falando para o Aldir que estava batalhando para trazer o irmão do exílio”, recorda Ivan Cosenza de Souza, filho de Henfil, sobre a história por trás de “O Bêbado e a Equilibrista”. De tanto ouvir os reclamos saudosos do cartunista pelo irmão, o poeta fez valer sua veia artística e colocou o sentimento na canção. Ainda baqueado com a notícia da morte de Aldir, Ivan, que teve o primeiro contato com a canção ao ganhar um LP da própria Elis Regina, reforça a importância do carioca para além da música popular brasileira.

“Ele é uma pessoa que contribuiu tanto para a história do país como um todo. Infelizmente, não vou poder dar um abraço na esposa dele, na filha… Não vamos ver uma roda de samba para homenageá-lo”, lamenta. “As letras do Aldir são difíceis de bater. Elas têm, ao mesmo tempo, uma erudição e são extremamente populares. Ele não fazia letra boba nem intelectualóide, e conseguiu tocar todo mundo”, completa Daniel Souza.

Em 2009, quando inaugurou o Instituto Henfil, Ivan homenageou Aldir e João Bosco, e os colocou no conselho da instituição. Desde então, sua relação ficou mais próxima com o compositor. “Ele estava recluso nos últimos tempos, com problemas de saúde. Fez seu próprio isolamento até chegou a brincar que, nessa parte da pandemia, ele ia tirar de letra”, comenta.

Para lembrar Aldir Blanc, Ivan criou uma nova versão da ilustração que o pai fez para o encarte do disco de Elis Regina em que ela interpreta "O Bêbado e a Equilibrista": "Meu pai fez esse desenho para o encarte do disco da Elis, que lançou a música "O Bêbado e a Equilibrista", e resolvi fazer essa adaptação para homenagear o querido Aldir Blanc, que junto com João Bosco, fez a maior homenagem que meu pai recebeu até hoje. Virar letra de música!"

 

A voz do subúrbio

Para o jornalista, crítico musical e escritor Jotabê Medeiros, uma das características mais marcantes de Aldir Blanc foi a capacidade de saber entender e traduzir em canções a alma do povo brasileiro, suas paixões e cumplicidades. “Ele jamais subestimou as qualidades do brasileiro. É um cara que se irmanou nesse ideário, foi a voz do subúrbio com uma qualidade poética extraordinária. Ele se postou ao lado desse contingente”, diz Medeiros.

Gravado por Clementina de Jesus, Elis Regina, Nana Caymmi, Maria Alcina, Fafá de Belém, Simone, Maria João e tantas outras, o escritor também ressalta que Aldir conseguiu seduzir, com sua musicalidade, dezenas e dezenas de cantoras. “Ele despertou nas mulheres intérpretes uma vontade de cantar as canções dele, são poucos que têm tanto apelo assim”, opina o jornalista.

A sambista Fabiana Cozza é uma dessas intérpretes fisgadas pelos versos de Aldir. Em seu segundo disco, “Quando o Céu Clarear”, de 2007, ela gravou “Nação”, outra parceria do compositor com João Bosco e Paulo Emílio. “Essa canção passa pelo Brasil ameríndio, afroíndio, que está morrendo”, diz. Para a cantora, Aldir Blanc é sinônimo de defesa da democracia e de um homem combativo dentro de seu ofício como artista: “Sinto uma tristeza profunda, choro a morte dele, mas vou cantar Aldir até o final também como uma escolha política. Ele vive na sua arte gigante”.

Parceiro de Aldir na música "Chão Brasileiro", gravada por Selma Reis, o maestro Wagner Tiso diz que ficava maravilhado com a variedade de assuntos que o compositor dominava e como ele conseguia, seja com gírias seja com poesia, colocar isso de forma muito bonita. “Hoje até estive pensando em escrever alguma coisa nas redes sociais pedindo força para ele. É um parceiro querido, deixou uma obra muito bonita”, diz. Além da música, Wagner e Aldir, que se conheceram em um festival da TV Tupi, ainda nos anos 60, dividiam a paixão pelo mesmo clube de futebol, o Vasco da Gama. “Ele era uma figura, lutou muito para viver", comenta o maestro.

Para o multi-instrumentista mineiro Célio Balona, Aldir Blanc é um dos principais letristas do Brasil, “grande garimpeiro de palavras, um cara que sabia jogar as palavras como estrelas no céu”. Balona diz que Aldir deixa músicas maravilhosas, como “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá” e sua rima que pega emprestado o “o Band-aid no calcanhar”. “Ele foi um poeta, um repórter do seu tempo. Ele pegava uma música e fazia uma peça de arte. Hoje, nós estamos trajando luto”, lamenta o músico.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!