É certamente desafiador, mas não impossível, como mostra agora o Grupo Maria Cutia, levar ao palco “O Auto da Compadecida” depois do sucesso da minissérie de mesmo nome dirigida por Guel Arraes. Essa responsabilidade foi tomada para si pela companhia belo-horizontina a partir do convite do consagrado diretor mineiro Gabriel Vilela, com quem a trupe realiza sua primeira parceria, depois de já ter trabalhado com Eduardo Moreira, diretor do Grupo Galpão.
“Nós não estamos nos desprendendo totalmente das versões anteriores, mas estamos, sobretudo, nos agarrando a um texto que, para nós, oferece um modelo universal com seus personagens picarescos, que se envolvem em aventuras mundo afora”, observa Vilela em entrevista ao Magazine, após o primeiro ensaio aberto realizado no dia 30, no Galpão Cine Horto.
Uma espécie de saída para revisitar essa história sem que o resultado parecesse algo à sombra das adaptações anteriores do clássico de Ariano Suassuna (1927-2014), segundo o diretor, foi guiar-se pelo viés da ironia. Esse recurso é arquitetado nitidamente pelas referências à tropicália, o que Vilela considera fundamental para estimular a reflexão, no contexto em que a arte tem sido desvalorizada de maneira mais agressiva.
“A ironia é fundamental num momento de grande pressão. Só ela pode salvar a metáfora, a poesia. O que está acontecendo hoje é muito grave. Temos pessoas ignorantes no poder, e eu aposto nessa força mítica da obra de Suassuna para atravessarmos isso”, frisa Vilela, que revela estar descontente e pouco esperançoso com os rumos da política em níveis estadual e nacional.
Contudo, ele reforça não ter trazido nada de pessimismo para sua versão de “O Auto da Compadecida”. “Eu trouxe a utopia. O elenco do Maria Cutia é formado por jovens. A Mariana Arruda está grávida e vai ter neném daqui a 15 dias, e eu tentei criar um espetáculo feliz, pautado no governo do Carnaval”, frisa o diretor.
Não à toa, além de Mariana, que, entre outros personagens, encarna Nossa Senhora, e de Leonardo Rocha, que dá vida a João Grilo – ambos fundadores do Grupo Maria Cutia –, o elenco é reforçado pelo cantor e ator Marcelo Veronez, um das estrelas da festa momesca da capital.
“Eu trouxe o Marcelo Veronez e canções que são interpretadas com uma pegada de marchinhas. Eu acho que o Carnaval salva, e é nessas grandes expressões populares que encontramos o antídoto para alguns problemas. Acho que a intenção ali é criar uma bolha de proteção poética”, diz Vilela.
Desta vez, a música, uma das marcas do Grupo Maria Cutia, conhecido por apresentar composições próprias em seus trabalhos, abarca repertório de outros artistas, como Caetano Veloso e Sérgio Sampaio (1947-1994)
“Gabriel teve a ideia de trazermos as canções desses artistas, e nós apenas reivindicamos que nós tocaríamos as músicas ao vivo, sem playback, porque achamos que o impacto é muito maior. A música é sinestésica e, no ambiente da rua, é muito generosa, consegue reconectar o espectador à peça em um espaço dispersivo”, diz Rocha.
Concebida a partir de recursos viabilizados por meio de campanha de financiamento coletivo, a montagem foi pensada, assim, para ser encenada na rua. Contudo, diante da burocracia e dos altos custos para realizar esse tipo de apresentação, o Maria Cutia vai estrear primeiro fora de casa, nos dias 9 e 10 de junho, na Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto (SP), a convite do Sesc, e deverá cumprir temporada em agosto, no Sesc Palladium.
Vilela comenta que persistir em um espetáculo de rua quando o cenário é adverso é um gesto de resistência. “É uma forma de não acreditarmos que o sonho é paralítico neste instante. Ele pode até sofrer paralisia circunstancial, mas a arte é sempre algo maior, uma vitória de vida sobre a morte”, conclui.