Espetáculos adiados - ou mesmo cancelados. Cinemas fechados. Centros culturais e museus, idem. Nos teatros, cortinas cerradas. Uma das categorias mais impactadas com a quarentena acionada pelo avanço do novo coronavírus foi a cultural. Não por outro motivo, muitas iniciativas que têm sido lançadas a toque de caixa para tentar contemplar a cadeia de profissionais que estruturam o setor tem levado a palavra "emergência" em seu título ou escopo. Caso do programa de incentivo à criação artística concebido pelo Instituto Moreira Salles para vigorar durante um período que, segundo eles mesmos reconhecem, é ainda imprevisível .
Nesta primeira etapa, serão R$ 500 mil, destinados a duas ações. Uma, formada por projetos individuais comissionados pelo IMS que ficarão disponíveis para o público no site e redes sociais da instituição, na aba "IMS Quarentena - Programa Convida". De acordo com o comunicado, serão contemplados cerca de 50 criadores, nas áreas de atuação do Instituto: fotografia, cinema, música, literatura, artes visuais e desenho gráfico.
Em outra frente, o IMS convidou coletivos de produção artística e ação social com os quais já mantém parceria, e que atuam em regiões de grande vulnerabilidade, para que construam e desenvolvam projetos em seus campos de atuação.
A boa notícia é que o rol dos convidados abriga vários expoentes de Minas Gerais - caso de Grace Passô, do projeto Retratistas do Morros, do artista Desali, a compositora/rapper Brisa Flow e o artista (de Pirapora) Davi Nascimento, além de membros da musical família Ernest Dias.
Diretor artístico do IMS, João Fernandes conta que a iniciativa nasceu exatamente de uma noção de emergência. "Um sentido de urgência mesmo, diante dessa situação, dessa tragédia que está a afetar a humanidade, que está a confinar artistas. E ser artista é uma das condições mais corajosas, pois ele acrescenta ao mundo coisas que não existem - formas, cor, imagens, pensamentos, conceitos. Coisas que partem de um confronto consigo mesmo, pois não é fácil entregar ao mundo algo que não existe. Então, o IMS pretendeu criar uma experiência na qual, nesse período, esses artistas possam receber alguma ajuda, mas que oxalá esse seja um caminho que permita mostrar a importância das manifestações artisticas em nossas vidas mesmo quando estamos confinados. Que nesse período de distanciamento social não entremos em contato apenas com o que já foi feito, mas que novos momentos possam vir", advoga.
Fernandes esclarece que a intenção é que os artista possam elaborar obras sem muitas complicações. Muito menos, deslocamentos. "Afinal, estamos todos em casa. Queremos incentivar os artistas a trabalharem com aquilo que já têm".
Outro norte foi buscar representatividade também fora do eixo Rio-São Paulo. "Pensando nisso, usamos nosso radar, nossas antenas para tentar mapear o Brasil, com uma lista representativa da grandeza da arte e da cultura brasileira. Procuramos dar uma atenção especial à diverisdade de raça e de gênero. O país tem tantas assimetrias sociais que se faz urgente e necessário um olhar para os que vivem situações mais frágeis. No caso da arte, iniciativas extraordinárias que atuam também como formas de transmissão de culturas, como as indígenas, quilombolas". Fernandes também promete que essa é apenas uma primeira lista. "Não podemos fazer tudo agora, mas tínhamos pressa, e por isso lançamos esses 50 nomes. Mas vamos continuar o processo, pensar já em mais artistas".
As duas novas iniciativas, vale dizer, integram o projeto #IMSquarentena, que está no ar (https://ims.com.br/quarentena/) desde o dia 3 de abril, com ensaios do acervo, trabalhos inéditos, podcasts e indicações de leitura sobre a atual conjuntura. O material, preparado pelas equipes das revistas "serrote" e "ZUM", está disponível no site institucional (ims.com.br) e nas redes sociais (facebook, twitter e instagram) do Instituto Moreira Salles. te
Retratistas do Morro. Um dos nomes por trás de um dos projetos mineiros contemplados - no caso, o Retratistas do Morro, o pesquisador Guilherme Cunha enfatiza o momento crítico que o país está vivendo. "Um momento de repensar as estruturas produtivas, de como é que a gente vai se relocar diante da organização social como um todo, da cultura, da economia. A maneira como a gente se percebe e se entende como sociedade, ela precisará ser revisitada, pois a gente percebe que num momento desses, de uma calamidade humanitária, de uma crise sanitária de dimensões globais, existem demandas muito pontuais e muito específicas que precisam ser atendidas".
E uma delas, entende ele, é a da rede produtiva da cultura. "Que, em alguns países, é responsável por até 30% do PIB. No Brasil, os números oficiais dão conta que a indústria e a produção cultural como um todo são responsáveis por 5% do PIB, mas pode ser que esse número esteja subestimado, porque estão envolvidos, nessa lógica da produção cultural e criativa, ou seja, de pessoas envolvidas na produção do simbólico e do sentido, escritores, músicos, designers, fotógrafos, bailarinos, pintores, produtores culturais, curadores, desenvolvedores de softwares... Ou seja, em alguns pontos, os meios de produção acabam se interconectando, e todos os setores estão sofrendo neste momento", pondera Cunha.
O também artista visual, porém, situa que, para além da importância das questões drietamente econômicas e financeiras, a preocupação maior, agora, é a preservação da vida. "No campo da arte e da cultura, é o momento de a gente ser mais inteligente, mais criativo, mais propositivo do que o problema que nos aparece. E essa alternativa que o IMS coloca para que autores, fotógrafos, artistas e trabalhadores da rede produtiva da cultura possam dar vazão a seus processos criativos, seus meios de expressão; é fundamental". Da mesma maneira, ele salienta a importância de inventar espaços de fruição para a produção sensível - a que, enfatiza, dá sentido à vida. "Fundamentalmente, a arte é o lugar no qual se produz sentido para a vida".
O projeto "Retratistas do Morro", vale lembrar, visa a inserção e a conexão da produção fotográfica de profissionais que trabalharam registrando o cotidiano de vilas, favelas e comunidades (a partir da década de 50 e 60) na história da fotografia brasileira. Atualmente, o projeto orbita em torno do acervo de dois fotógrafos, João Mendes e Afonso Pimenta, que trabalharam por quase 50 anos registrando o cotidiano da comunidade da Serra. "Nosso objetivo é nos debruçarmos sobre os depoimentos deles, acervos e memórias, e tentar compilar um vídeo que represente a dimensão dessa trajetória de vida, na qual produziram um acervo, uma iconografia inédita. Por meio desse vídeo que vai ser construído, queremos sublinhar a importância de se resgatar a memória imagética de uma população e salientar como isso pode contribuir para que a gente entenda que todos os modos de ser, todas as expressões criativas e todas as subjetividades colaboram para a construção de uma historia comum".
Guilherme Cunha prossegue: "Mas uma história comum que inclua todos os modos de vida e todas as perspectivas de historicidade, e não uma na qual um tipo de pensamento se coloque em detrimento de todos os outros. Uma estrutura de pensamento esférico, circular, que dê conta de trazer para dentro do nosso entendimento da percepção historica todas essas imagens com as quais eles vêm trabalhando".