Ao contrário de outros filhos de artistas, Júlia Tizumba nunca recebeu grandes incentivos do pai - ninguém menos que o grande Maurício Tizumba - para se enveredar pela seara artística. Na verdade, foi exatamente o oposto. "Sempre gostei muito de estudar e sempre fui muito estimulada pelos meus pais, sobretudo por ele, a prosseguir neste lugar da chamada 'educação formal'. A minha família sempre foi muito rica nos saberes ancestrais, nos saberes da cultura popular, mas, exatamente pela desigualdade social, pela desigualdade de oportunidades que existe no país, ele (Tizumba) sempre me incentivou a estudar mais e mais", conta a moça, hoje com 31 anos. Sendo assim, quando Júlia bateu o martelo para que a arte fosse a sua profissão primeira e decidiu fazer a prova para o Teatro Universitário da UFMG (mesma escola na qual Tizumba se formou), o artista não reagiu com grande entusiasmo. "Ele falou, meio reticente: 'Nossa, minha filha, mas você vai ser artista também?'", recorda.
Por outro lado, quando Júlia passou no curso de jornalismo da PUC Minas, o clima foi bem diferente, de festa. "Ele dizia: 'Você tem que cursar, se for preciso vendo até meu carro'. Ficou muito feliz por eu fazer algo além da arte", relembra ela, ressalvando, porém, que não teve jeito. "Eu cumpri (o desejo do pai): me formei em jornalismo, fui até destaque acadêmico. Mas a arte sempre me chamou mais".
Seja como for, comprovando o citado gosto pelos estudos, Júlia não se contentou só com a graduação. Fez o mestrado na UFMG e, nesta terça-feira, lança em formato livro a sua tese: "Maurício Tizumba: Caras e Caretas de um Teatro Negro Performativo" (Javali), no qual dialoga com pesquisadores das artes e das culturas negras a partir da pergunta: “o que é Teatro Negro?". Chancelado pela editora mineira Javali, a obra aponta características fundamentais não somente do trabalho do pai da autora, mas dos teatros negros de forma geral. Para tanto, Júlia participará de uma live, às 20h, no Instagram.
Mas, afinal, qual seria a tradução, para a autora, do conceito de "teatro negro"? "Uma das conclusões que eu trago é que, mais do que dizer o que é teatro negro, quero reconhecer a existência de diversos teatros negros possíveis no Brasil, assim como nós somos diversos". Dito isso, ela adiciona que esses teatros negros "são teatros que trazem o corpo negro, a corporeidade negra, a corporalidade, a performatividade negra para dentro da cena, e que nos colocam - nós, enquanto sujeitos negros - como protagonistas e autores da nossa história, da nossa narrativa, das nossas textualidades, das nossas espetacularidades negras".
Júlia também ressalva a alegria de o livro estar sendo lançado junto à Editora Javali. "Creio que é primeira editora em Belo Horizonte que se dedica à publicação de teorias teatrais e de espetáculos teatrais, e uma das únicas do Brasil. É uma alegria trazer o teatro negro performativo de Maurício Tizumba junto à Javali, valorizando o nosso teatro mineiro e, em particular, o nosso teatro negro mineiro. E, por fim, tenho dito que espero que a publicação contribua para que a gente alcance essa igualdade de direitos que busca, e que ele sirva também como fonte para outras pesquisas dessa temática, para a gente continuar construindo, operando, trabalhando neste sentido".
Ponto de virada
Cumpre dizer que na graduação, Júlia fez o seu TCC sobre arte - no caso, arte na periferia. "Mas, nele, não falava sobre meu pai. E, na verdade, usava o nome Júlia Dias, que foi o meu nome de batismo dado por ele - porque meu pai nunca quis vincular a história dele à minha. Assim, se eu ia dar uma canja em seus shows dele, eu era sempre a Júlia Dias". Não que Júlia se importasse, à época. "Para falar a verdade, eu, naquele lugar de me construir, também queria uma certa independência dele. Veja, o meu pai sempre foi um artista muito potente e reconhecido aqui em Minas e no Brasil, e eu ali, na juventude da juventude, queria firmar a minha identidade".
Foi algum tempo mais tarde que Júlia se deu conta da potência do sobrenome Tizumba. "É um nome original, único, e diz de uma descolonização do meu ser, né? Porque os nossos nomes africanos foram apagados na colonização, então, colocar Tizumba é também um lugar de exaltar a minha ancestralidade negra - e tem tudo a ver com meu trabalho artístico, vinculado com as artes negras". O momento da virada se deu quando ela foi fazer o musical "Elza", sobre a vida de Elza Soares. "Percebi que era um trabalho que tinha uma projeção nacional independente do meu pai, e falei: 'Quer saber? Agora vou me batizar como Júlia Tizumba mesmo. Já quando fui fazer o mestrado, quis pesquisar arte negra, teatro negro, as contribuições do povo africano e afro-brasileiro para os pensamentos, para a teoria das artes da cena. E aí falei: 'Agora, vou falar do meu pai'. Me senti segura. Senti que a minha identidade já estava se construindo de uma forma mais sólida, que não precisava mais ter medo do vínculo - e, ao contrário, quero honrar o nome do meu pai, haja visto que eu fui aprovada no processo seletivo como 'tema relevante'.Ou seja, a história de vida e artística do meu pai é uma história relevante, e e se eu sou filha dele, vamos abraçar essa honra, essa herança".
O processo da maturidade, pondera Júlia, segue em construção ("claro"). Mas o que aconteceu ali, naquele momento, é que ela se deu conta de que já tinha maturidade para "poder aliar as forças do afeto, do parentesco, com as forças da objetividade, da critica que a pesquisa pede para construir um trabalho que fosse tanto um registro da história de vida e da obra de Maurício Tizumba (um registro que valorizasse, que desse visibilidade para a obra dele) como também uma contribuição para o pensamento acadêmico, para o pensamento das artes da cena, a partir de uma releitura do teatro do ponto de vista da corporeidade negra".
Dois anos
Foram dois anos de pesquisa para concluir a dissertação. "Pode parecer muito tempo, mas não é. Durante esses dois anos, tantas coisas acontecem na vida da gente. Eu estava com uma bebezinha pequena, que é a minha filha, Yara; eu passei na audição do musical 'Elza', minha mãe faleceu... Foram muitas coisas neste tempo, por isso eu também considero que o resultado do trabalho representa meus primeiros passos como escritora, como pesquisadora, como pensadora", assume.
Presentes no livro, as entrevistas com Tizumba e Sergio Pererê, conta ela, fizeram parte da metodologia de pesquisa dentro do mestrado, "como fontes mesmo para construção do texto acadêmico". "A dissertação foi um diálogo entre a revisão bibliográfica que eu realizei sobre o conceito de teatro negro. E aí eu fui visitar pensadores e pesquisadores que já estão aí há muitos anos construindo essa história do pensamento negro acadêmico. Então, eu revisitei (o trabalho de) Leda Maria Martins, que é a precursora do pensamento da perfomance negra dentro da academia - ela é da Letras, da UFMG. Não posso deixar de citá-la e de honrá-la. E revisitei também o (trabalho de) Marcos Alexandre, também da Letras da UFMG".
Um outro ponto que ela destaca é o fato de estar assinando o primeiro trabalho acadêmico sobre teatro negro na Escola de Belas Artes da UFMG. "Porque o estudo sobre a presença e a contribuição negra nas artes dentro da UFMG, ele é muito pensado, já tem muita gente fazendo isso, seja na Faculdade de Letras, na de Educação, na de História. É resistência. E a resistência dentro desses espaços é muito grande já há muito tempo. Mas dentro na Escola de Belas Artes... As artes, no meu ponto de vista, carregam um racismo ainda mais arraigado. Tanto é que o meu trabalho foi o primeiro dentro do mestrado acadêmico. Eu já encontrei um outro dentro do mestrado profissional, falava sobre o teatro na educação. Mas no mestrado acadêmico, o meu foi o primeiro trabalho, e isso em 2019. Isso é louco quando a gente pensa num país como o Brasil, que tem mais da metade da população negra, né? É não reconhecer esse lugar de valor da contribuição negra dentro das artes. Mas, enfim, esse trabalho que eu realizei nestes dois anos é um diálogo dessa revisão bibliográfica, no qual eu convidei Leda Maria Martins, Marcos Alexandre, Evani Tavares, que é da Bahia, bem como outros pensadores pretos, para um diálogo comigo. Tecendo. Porque para mim, a pesquisa acadêmica é um grande tear. Eu venho com a minha linha, que é meu pensamento, o meu argumento, e convido a linha de pensamento da Leda, a linha de pensamento do Marcos, da Evani e, daí, construo essa teia que é esse pensamento que está dentro dessa dissertação. Essa revisão junto ao meu trabalho de campo, que é a observação participativa que eu sempre vivi desde que eu nasci junto a meu pai, até começar a de fato trabalhar com ele, aos 15 anos. Da pesquisadora, observando o trabalho dele de dentro da cena, até outra já mais crítica-analítica da pesquisadora. E as entrevistas que realizei com ele".
Júlia somou a isso a observação de materiais de arquivo de Tizumba - capas de discos, flyers, folderes, programas de espetáculo e afins. "Então, o resultado desse trabalho é a junção da revisão bibliográfica com a revisão participativa, mais a análise de material de arquivo e a realização de entrevistas. Foram dois anos de mestrado nos quais tudo isso aconteceu, mas, por trás, tem toda uma vida de experiências com ele".
Sobre a autora
Nascida em Belo Horizonte, formada no Teatro Universitário da UFMG, em Jornalismo pela PUC-Minas. É mestra e doutoranda em Artes Cênicas pela Escola de Belas Artes da UFMG. Cantora e percurssionista, começou seus estudos artísticos aos 10 anos de idade. É atriz da Companhia Burlantins e uma das idealizadoras da Mostra Benjamin de Oliveira. Também integra o Coletivo Negras Autoras, atuando como compositora, cantora e instrumentista. É regente e ministra aulas de percussão na Associação Cultural Tambor Mineiro e integrou o elenco dos musicais: "Elza"; "O Frenético Dancin’Days", "Oratório", "NEGRA.A", "ERAS", "Clara Negra", "Madame Satã", "Zumbi" e "O Negro, a Flor e o Rosário".
Serviço
"Maurício Tizumba: caras e caretas de um Teatro Negro performativo"
Lançamento nesta terça-feira, 8, às 20h, por meio de live com a autora e a Editora Javali.
Local: Instagram @editorajavali e @juliatizumba.
Preço promocional de lançamento: R$ 40,50
Valor de capa após o lançamento: R$45
Páginas: 160