A multi-instrumentista, cantora e compositora mineira Letícia Coelho comprou uma rabeca em 2013. Começava, então, uma relação de paixão, respeito e investigação com o instrumento de arco, precursor do violino. Arrebatamento talvez seja uma palavra correta para definir essa ligação da artista com a rabeca, tanto que ela se mudou para Pernambuco, onde passou um mês e meio tendo aulas com rabequeiros em Recife e Olinda. No município de Condado, terra de forró e baião, mas especialmente do Cavalo Marinho, manifestação folclórica característica da Zona da Mata pernambucana, Letícia teve um encontro especial.

Em Condado vive o Mestre Luiz Paixão, símbolo e referência na arte da rabeca, com quem Letícia passou alguns dias em uma intensa experiência criativa e de aprendizado. “Eu acordava às 8h e tocava rabeca até a noite. Meus dedos quase caíram de tanto tocar”, ela brinca. “A exaustão faz parte desse processo”, completa Letícia.

É a voz de Mestre Luiz, carregada de sotaque e carinho, que aparece nos segundos finais de “No Passo da Rabeca” (selo YB Music), disco que Letícia lançou nesta quinta-feira (11). “Eu nem escutei tudo ainda, porque eu estava mexendo aqui… Mas, antes de escutar tudo, já estou dizendo a você que você está de parabéns, viu, mulher?”, diz o Mestre, todo orgulhoso. “Eu comecei a aprender com 12 anos, fiquei apaixonado pela rabeca, achava muito bonito. Eu dizia: ‘Vou aprender a tocar rabeca!’”, ele conta em “Mestre Luiz Paixão”, faixa-depoimento do pernambucano, “uma das mais importantes do disco”, afirma Letícia Coelho.

Resultado de oito anos de estudos Brasil afora, o álbum é não somente uma ode à rabeca, mas um tratado-sonoro sobre a importância do resgate do instrumento. É, também, uma costura de ritmos e uma celebração aos orixás, à ancestralidade e à cultura afro-brasileira. Para a compositora, que concluiu mestrado em antropologia, algo indubitavelmente relevante na procura pelo saber da rabeca, era fundamental mostrar a herança africana e dos povos indígenas na história do instrumento.

Isso é visto nos atabaques e sons de terreiro que permeiam o disco – “Baião de Oyá”, single lançado em outubro, tem essa característica. “Nesse disco existe uma marca ameríndia muito séria. Senti a necessidade de compor músicas próximas a essa epistemologia afro-ameríndia.

Diferentemente de “Brota” (2018), primeiro álbum da mineira, marcado por uma sonoridade mais pop, com guitarras e timbres diversos, “No Passo da Rabeca” dá todo o protagonismo ao instrumento e, assim, mostra suas tantas possibilidades, um dos desejos de Letícia ao gravar o disco.

“A rabeca dá toda a liberdade. Se eu quiser tocar choro ou blues eu posso. Nesse sentido, ela é muito generosa tanto como instrumento rítmico quanto melódico. São muitas texturas sonoras. Fiz uma percussão com a rabeca na primeira faixa, por exemplo. Em outras, a rabeca cumpriu a função de um contrabaixo”, comenta a rabequeira, natural de Amparo do Serra, na Zona da Mata de Minas, onde Letícia, ainda criança, teve contato com congados, rodas de samba e serestas de sua família.

Composto e gravado durante a pandemia, “No Passo da Rabeca” traz quatro músicas  tem como “banda-base” Letícia (rabeca, vozes e percussões) e o multi-instrumentisa cabo-verdiano Jeff Nefferkturu (violões, cavaquinho, clarinete, flauta e contrabaixo), mas as participações incluem rabequeiros da tradição popular, como o Mestre Luiz Paixão, e nomes contemporâneos, caso de Luiz Fiammenghi. Nos vocais aparecem Dandara Manoela (“Ossain”), Luana Flores e Renna, ambas em “Cuatro Cantos”. “No Passo da Rabeca” também tem contribuições da performer Fabiana Vinagre (“Travessas”), do percussionista Leonardo de Oliveira e da multi-instrumentista Camila Menezes, que gravou viola caipira em “Chegada”.

As 14 faixas do álbum – quatro delas compostas como o trabalho de conclusão na graduação em música, concluída em Florianópolis – são a tentativa de Letícia Coelho de colocar a rabeca, definitivamente, no território musical brasileiro, reconhecendo essa sonoridade como “música atual, moderna e revolucionária”.

Para a compositora, os rótulos de “tradição” e “cultura popular” coloca a rabeca em um lugar distante, inacessível, como se para chegar até ela fosse preciso uma espécie de ritual para poucos iniciados: “Esse disco é uma provocação, quero dar essa noção de protagonismo à rabeca em uma música atual, contemporânea, que pode ser feita agora e precisa ser olhada como música brasileira”.