Legado

60 anos de Renato Russo, o homem que compôs a música mais triste do mundo

Líder da Legião Urbana morreu em 1996, aos 36 anos, vítima de complicações decorrentes da Aids, e impregnou a sua obra de melancolia

Por Raphael Vidigal
Publicado em 27 de março de 2020 | 03:00
 
 
 
normal

Não são apenas os versos "Dos nossos planos é que tenho mais saudade/ Quando olhávamos juntos na mesma direção/ Aonde está você agora/ Além de aqui dentro de mim?", mas a melodia melancólica e a interpretação de Renato Russo que, combinadas, afundam o ouvinte numa depressão aterradora. 

Nascido há 60 anos, num dia 27 de março, no Rio de Janeiro, Renato morreu prematuramente, em 11 de outubro de 1996, aos 36 anos, vítima de complicações decorrentes da Aids. Quando compôs "Vento no Litoral" (com o auxílio de Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá), o músico já se sabia portador do vírus HIV, fato que ele nunca externou publicamente, ao contrário de Cazuza que, meses após morrer, em 1990, foi homenageado pelo líder da Legião Urbana em um show, quando ele interpretou, com sua voz poderosa e grave, "Quando Eu Estiver Cantando", última canção do derradeiro disco do autor de "Exagerado". 

Sentimento. De uma maneira ou de outra, a melancolia sempre permeou a obra de Renato, como comprova a faixa "Soldados", do álbum inaugural da Legião Urbana. No entanto, essa visão pessimista e desconsolada da vida se intensificou no decorrer da trajetória do músico, que só assumiu a homossexualidade em 1989 e, com dificuldades de lidar com uma solidão crescente, se afundou cada vez mais no vício em álcool e drogas, afastando companheiros leais e se envolvendo em brigas com os parceiros de Legião, Dado Villa-Lobos e Dado Bonfá, chegando ao ponto de protagonizar descontroles e chiliques públicos durante entrevistas e shows. 

O diagnóstico de Aids, naquele período uma sentença de morte antecipada, aprofundou uma depressão que perseguia Renato desde a juventude, quando ele era descrito como um adolescente introspectivo e arisco, algo que só mudou no momento em que ele começou a se envolver com o movimento punk, em Brasília, e fundou a banda Aborto Elétrico. 

Martírio. "Vento no Litoral" pertence à fase final da carreira de Renato, que contabiliza cerca de 15 títulos, entre trabalhos com banda, solos e coletâneas. Lançada em 1991, ela integra o álbum "V" da Legião, assim batizado por ser o quinto registro de estúdio do grupo. Posteriormente, a música ganharia uma versão pungente de Cássia Eller, para quem Renato compôs, em 1994, "1º de Julho", quando ela estava grávida de Chicão. 

"Vento no Litoral" foi gravada em um contexto pra lá de turbulento. A turnê do álbum foi a mais curta da banda e teve que ser interrompida em razão das constantes crises entre os integrantes, provocadas pela progressão do alcoolismo de Renato, que precisou se internar em uma clínica de reabilitação. No campo político, o então presidente Fernando Collor, que em breve sofreria um processo de impeachment, anunciara o confisco da poupança dos brasileiros, como medida para reativar a economia do país, estrangulada após anos de desastrosos regimes militares e do governo Sarney. 

À época, Renato declarou em entrevista que pretendia passar, com o disco, a sensação "de tédio e marasmo, ele é lento de propósito". Já a amigos íntimos a quem confidenciara estar com Aids, definiu a experiência com o coquetel de remédios para combater o vírus com uma frase letal: "É como se eu estivesse comendo um cachorro vivo. E o cachorro me come por dentro". No olho desse furacão, ele criou uma das canções mais comoventes de todos os tempos. 

Histórico. Sabemos que a música brasileira é pródiga em canções dolorosas, que o diga "Preciso Me Encontrar", feita por Candeia quando o sambista, que também trabalhava como policial, levou cinco tiros, sendo que dois atingiram a sua medula espinhal, e ficou paraplégico. Regravada por Cartola, a canção eternizou esse triste lamento: "Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar".

O próprio Cartola é autor de "O Mundo É um Moinho", apta a destruir as ilusões do sonhador mais determinado: "Ouça-me bem, amor/ Preste atenção, o mundo é um moinho/ Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos/ Vai reduzir as ilusões a pó". Na mesma toada temos "Luz Negra", de Nelson Cavaquinho: "Sempre só/ Eu vivo procurando alguém/ Que sofra como eu também/ Mas não consigo achar ninguém". 

O encontro entre o paulistano Adoniran Barbosa e o carioquíssimo Vinicius de Moraes rendeu "Bom Dia, Tristeza", cantada por Maysa, que encarnou como ninguém o espírito da cantora de fossa e deu voz a esses versos lancinantes: "Bom dia, tristeza/ Que tarde, tristeza/ Você veio hoje me ver/ Já estava ficando até meio triste/ De estar tanto tempo longe de você".

A mesma Maysa empregou contornos definitivos a "Demais", de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira: "Ninguém sabe é que isso acontece por que/ Vou passar minha vida esquecendo você/ E a razão por que vivo esses dias banais/ É porque ando triste, ando triste demais". A música foi regravada com competência por Angela Ro Ro. 

E como não se lembrar de "Atrás da Porta", de Chico Buarque, que levou Elis Regina às lágrimas durante a interpretação de versos de lascar o coração: "Quando olhaste bem nos olhos meus/ E teu olhar era de adeus/ Juro que não acreditei". "Caminhemos", o bilhete de despedida de Herivelto Martins para Dalva de Oliveira, lançada por Nelson Gonçalves, é outro exemplo habilitado a ferir como lâmina: "Não, eu não posso lembrar que te amei/ Não, eu preciso esquecer que sofri/ Faça de conta que o tempo passou/ E que tudo entre nós terminou/ E que a vida não continuou pra nós dois/ Caminhemos, talvez nos vejamos depois". 

Como essas, há inúmeras outras, talvez milhares. Mas nenhuma, nem a angustiante "Ne Me Quitte Pas", do belga Jacques Brel, tampouco a francesa "Hymne à L'Amour", de  Édith Piaf, atinge o nível de desolação de "Vento no Litoral", a música mais triste do mundo, capaz de reunir, num único verso, tamanho desamparo afetivo e existencial: "Aonde está você agora além de aqui, dentro de mim?". 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!