Não é preciso muito para compreender que Elis Regina (1945-1982) é a maior cantora brasileira de todos os tempos: basta ouvi-la. Nascida em Porto Alegre, a gaúcha completaria 75 anos nesta terça (17) se estivesse viva. Elis morreu aos 36 anos, vítima de uma overdose de álcool e cocaína. Para homenageá-la, a TV Cultura exibe hoje, a partir das 22h45, o especial “Elis 75: Transversal do Tempo”, com depoimentos de seus filhos, Maria Rita, Pedro Mariano e João Marcello Bôscoli, junto a imagens raras da turnê “Falso Brilhante”, de 1975 a 1977, além de entrevistas históricas de Elis a personalidades como Fernando Faro, criador do programa “Ensaio”.

A emissora também vai exibir a participação da cantora no “Jogo da Verdade”, meses antes de sua morte, em 1982. Ainda para este ano, está previsto um documentário conduzido por Nelson Motta, que pretende contar as histórias dos bastidores da gravação do disco “Tom & Elis”, de 1974, considerado pelo crítico musical Hugo Sukman como “uma homenagem da nossa maior cantora ao nosso maior compositor”. Curiosamente, há 50 anos, foi Motta quem produziu “...Em Pleno Verão”, álbum que repaginou a obra de Elis e trouxe faixas marcantes como “Vou Deitar e Rolar”, de Paulo César Pinheiro e Baden Powell, e “Bicho do Mato”, de Jorge Bem Jor.

Outra promessa é a do álbum “Te Adorando Pelo Avesso”, tributo da jovem cantora baiana Illy, que já disponibilizou os singles de “Alô, Alô, Marciano” e “Fascinação” nas plataformas digitais. Em São Paulo, a Orquestra Jovem Tom Jobim realiza concertos entre os dias 20 a 22 de março para saudar Elis. Abaixo, selecionamos 15 gravações antológicas da intérprete, cujo temperamento forte lhe rendeu o apelido de “Pimentinha”, e que deixou, ao longo da intensa carreira, 25 discos de estúdio e ao vivo, registrados entre 1961 e 1982.

“Na Batucada da Vida” (1934) – Ary Barroso e Luiz Peixoto

O Flamengo foi o primeiro time a ter seus gols comemorados no rádio através de uma gaita. Invenção do fanático Ary Barroso, que não se preocupava em disfarçar o amor pelo clube. Fazia de tudo: invadia o campo, xingava o juiz e até recusava propostas de se mudar para o exterior, sob a alegação: “Lá não existe Flamengo de Futebol e Regatas”. Anos mais tarde, em 1960, ele se tornaria vice-presidente do departamento cultural e recreativo do clube. Nascido desse estilo acalorado, tomou forma um samba que teve na passional Elis Regina a sua intérprete mais festejada. A música foi lançada por Carmen Miranda em 1934 e regravada por Dircinha Batista em 1950, com acompanhamento de Ary Barroso ao piano. “Na Batucada da Vida” relata as batalhas de uma mulher destemida.

“Aquarela do Brasil” (1939) – Ary Barroso

Lançada por Araci Cortes no teatro de revista, em junho de 1939, a música só se destacou um mês depois, quando voltou a ser apresentada, desta vez pelo barítono Cândido Botelho, no espetáculo “Joujoux e Balangandãs”. A primeira gravação em disco foi feita pelo cantor Francisco Alves, acompanhado por uma orquestra que executava o arranjo de Radamés Gnattali. Daí por diante, nomes como Sílvio Caldas, Carmen Miranda, Tom Jobim, Gal Costa, João Gilberto, Caetano Veloso, Bing Crosby e Frank Sinatra a regravaram. Durante a ditadura militar, Elis Regina interpretou a versão mais sombria da canção, acompanhada por um coral que reproduzia os cantos dos povos indígenas do Brasil.

“É Com Esse que Eu Vou” (1948) – Pedro Caetano

Pedro Caetano nunca foi compositor, pelo menos era isso o que a formalidade lhe falava. Manteve seu lar com o dinheiro dos calçados e vestidos que vendeu por toda a vida, só aparecendo de corpo e cara para gravar um disco próprio aos 64 anos. Mas, a essa altura, suas músicas já eram cantadas por muitos outros, populares e profissionais, sempre com popularidade e qualidade elevadas. “É Com Esse que Eu Vou” conclama o espírito carnavalesco a pisar na avenida sem menores distinções de raça ou classe. O importante é ir ao embalo do samba que alegra o carnaval brasileiro. Uma festa que começou no caderninho de Pedro Caetano durante uma viagem de trem de Vitória para Belo Horizonte, passou pelas vozes dos Quatro Ases e um Coringa e chegou até Elis Regina, regravando-a 25 anos depois do lançamento.

“Iracema” (1956) – Adoniran Barbosa

Dono de um estilo único que associou o chamado samba paulista eternamente à sua figura, Adoniran Barbosa (1910-1982) foi um dos mais importantes compositores da música brasileira. Além de imprimir o sotaque, em parte caipira, em parte italiano, com o uso de expressões corriqueiras e gírias da região, Adoniran tinha ainda outra qualidade única: era capaz de, com uma só tacada, apreciar drama e comédia na mesma frase. O melhor exemplo desse talento certamente aparece em “Iracema”, samba de 1956 que conta o trágico acidente que levou à morte a esposa do viúvo que canta a música. A interpretação dramática para essa obra veio com Elis Regina, quando a canção já estava consagrada pelos Demônios da Garoa. Adoniran também a regravou.

“Black Is Beautiful” (1971) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle

Em plena ditadura militar no Brasil, no ano de 1971, os irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle lançaram um hino à beleza e força dos negros. Para tanto, fizeram uso de um dentre os inúmeros ritmos identificados com a causa, a “soul music”. Neste mesmo ano, Elis Regina, como era de costume ao interpretar qualquer canção, acrescentou ainda mais charme e vigor à música. “Black Is Beautiful” reage com indignação e coragem a todo o histórico de discriminação contra os negros, aos estereótipos e condições petrificadas pela escravidão, e ainda arremata com versos de erotismo e sensualidade pungentes: “Eu quero um homem de cor/ Um Deus negro/ Do Congo ou daqui/ Que se integre no meu sangue europeu…”.

“Águas de Março” (1972) – Tom Jobim

Por sua sofisticação melódica, pela inteligência dos versos e agilidade da interpretação, “Águas de Março” é um ícone da canção brasileira de todos os tempos, mas, sobretudo, pelo sentimento inebriante que transmite, pela sensação de algo novo e renovador. A função das chuvas que trazem “promessa de vida no teu coração” não poderia ser representada de maneira mais feliz por Tom Jobim, autor da letra e da melodia, e Elis Regina, que, ao cantar em dueto com o maestro, contribui para dar novos contornos à canção. Escrita inicialmente num pedaço de papel de pão, pela ausência de outros recursos, “Águas de Março” anuncia, numa análise mais minuciosa, o triunfo da vida sobre a morte, a importância fertilizante das águas, da chuva, para o recomeço. “São as águas de março fechando o verão…”.

“Folhas Secas” (1973) – Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito

No ano de 1973, lembrando com nostalgia sua mocidade, Nelson Cavaquinho compôs ao lado do parceiro, Guilherme de Brito, a essencial “Folhas Secas”, que prestava uma homenagem à querida Estação Primeira de Mangueira, onde ele conhecera o samba que o levaria por toda a vida. A música foi alvo de uma polêmica jamais resolvida entre Elis Regina e Beth Carvalho, que a lançaram no mesmo ano. Inicialmente dada para Beth gravar, foi levada pelo arranjador César Camargo Mariano para Elis. O resultado foram dois registros belíssimos para a música brasileira e uma desavença severa entre as duas intérpretes.

“Meio-de-campo” (1973) – Gilberto Gil

Em 1973, Gilberto Gil homenageia o jogador Afonsinho, habilidoso meia do Fluminense que tinha uma combativa postura contra a ditadura militar instaurada no Brasil desde 1964. Voltando do exílio imposto pelos militares em Londres, no ano de 1972, Gil mistura, com a habitual inteligência, versos que fazem referência tanto ao esporte como ao momento político vivido, além de reflexões existenciais. Lançada com sucesso por Elis Regina no álbum “Elis”, a bordo de um instrumental de primeira, a música faz referência a outros ídolos dos gramados, como o Rei Pelé, atacante do Santos, e Tostão, do Cruzeiro, dois importantes nomes na conquista, pela Seleção Brasileira, do Tricampeonato Mundial no México três anos antes, em 1970. Também foi regravada pelo autor em seu álbum de 1973, “Cidade do Salvador”, e, anos depois, com o acompanhamento de Dominguinhos.

“Cabaré” (1973) – João Bosco e Aldir Blanc

Elis Regina é até hoje considerada por muitos a maior cantora brasileira de todos os tempos. Neste veredito aliam-se diversos fatores. Além da técnica apurada, do domínio de voz, gestos, da interpretação teatral e da entrega sem precedentes no palco, Elis sempre foi uma cantora ousada, inovadora, que buscava temas fortes e compositores novos. Graças a essa intenção, ela descobriu e selecionou, para o álbum de 1973, uma música do aspirante e já admirado por ela, João Bosco, em parceria com o veterano poeta Aldir Blanc. “Cabaré”, também gravada por Célia em outro registro primoroso, atina-se ao que há de obscuro e desconhecido em cada ser humano, esse enigma que, talvez, seja o grande responsável pela sedução, nas palavras de Milan Kundera, escritor tcheco de “A Insustentável Leveza do Ser”, a “promessa sem garantia”.

“Como Nossos Pais” (1976) – Belchior

Elis Regina, embora identificada noutro momento com a tradição da canção brasileira, gostava de pinçar novos compositores e descobrir músicas novas. Numa dessas procuras, ela descobriu Belchior, vindo de Sobral, no interior do Ceará, deparando-se com as dificuldades e asperezas da cidade grande. O relato verborrágico e narrativo do compositor, que se cristalizaria como marca registrada ao longo dos anos, pegou de jeito não só a intérprete, como multidões de jovens, crianças, adultos e idosos de todas as idades que repetiam inflamados os versos de inconformidade e desalento presentes na moderna elegia de Belchior. “Como Nossos Pais” ganhou prestígio imediato em todo o território nacional, por seu poder de identificação, centrado na simplicidade do tema, salpicado de frases precisas.

“Doce de Pimenta” (1976) – Rita Lee e Roberto de Carvalho

Para Elis Regina nunca houve dissociação entre música e vida; por isso a força de suas interpretações e a capacidade de chorar, rir e esbravejar no palco sem que pareça um artifício de convencimento da plateia ou pura demagogia. Em 1976, Rita Lee e Roberto de Carvalho compuseram um rock para saudar Elis, que visitara Rita na cadeia quando esta, grávida, havia sido detida por posse de maconha. Começou ali uma amizade improvável, já que as duas andavam em lados opostos na música brasileira, com Rita próxima da modernidade, e, Elis, da tradição. Num dueto impagável das duas, elas cantam a forte personalidade de Elis Regina, uma mulher livre que escolhia o que queria seguindo seu bico.

“Maria, Maria” (1978) – Milton Nascimento e Fernando Brant

Foi em 2018 que, finalmente, a música “Maria, Maria” ganhou um videoclipe à altura de seu sucesso. Clássico incontestável da obra de Milton Nascimento e símbolo do Clube da Esquina, a produção audiovisual trouxe Camila Pitanga, Zezé Motta e Sophie Charlotte no elenco, entre outras atrizes. Lançada em 1978 no não menos histórico LP “Clube da Esquina 2”, a música nasceu a pedido de um balé do Grupo Corpo, com roteiro de Fernando Brant (1946-2015). Por conta disso, a história sobre várias mulheres negras que trabalharam na casa de Brant, no tempo em que ele morou em Diamantina, inspirou a letra do poeta mineiro. Elis Regina gravou a música no ano de 1980.

“O Bêbado e a Equilibrista” (1979) – João Bosco e Aldir Blanc

O ano de 1979 ficou marcado pelo lançamento de “O Bêbado e a Equilibrista”, uma canção inesquecível por três motivos. A interpretação de Elis Regina, sempre visceral, a melodia de João Bosco e a letra de Aldir Blanc que retratavam um momento de dificuldade e superação pelo qual passava o país, em plena ditadura militar, mas, sobretudo, os personagens retratados nesta parábola do real. Dentre eles, o sociólogo Betinho, simbolizado pela “volta do irmão do Henfil”, após o exílio, era um dos nomes mais reverenciados naquela anistia política. A ele se juntavam personagens famosos como Carlitos, interpretado por Charlie Chaplin nos cinemas, e outros facilmente identificáveis, anônimos, mas, apesar disto, conhecidos, como os bêbados e equilibristas do Brasil.

“Bolero de Satã” (1979) – João Nogueira e Paulo César Pinheiro

Levada à casa de João Nogueira pelo amigo Paulo César Pinheiro, a cantora Elis Regina ganhou de presente a música “Bolero de Satã”, com letra de Pinheiro e melodia de Guinga. Elis decidiu convidar para a faixa, gravada no álbum “Essa Mulher” (1979), Cauby Peixoto, que ela considerava o melhor cantor do Brasil. Como se sabe, Elis tinha um temperamento competitivo e era avessa a dividir os holofotes. Ela não gostava de duetos. De fato, o que se viu foi outra coisa, mesmo com seu ídolo maior. Ao longo dos 3 min 25s da canção, a presença de Cauby se resume a 32 segundos, sendo que, em boa parte deles, Elis faz vocalises ao fundo, e, nos cinco segundos finais, os dois, enfim, unem suas belas vozes.

“Aprendendo a Jogar” (1981) – Guilherme Arantes

Um dos motivos sempre apontados para alçar Elis Regina ao posto de maior cantora brasileira é, não somente a qualidade da voz, a afinação, a entrega nas interpretações, mas a escolha do repertório. Elis gostava de recolher e pesquisar tanto temas então esquecidos pelo público e compositores relegados ao ostracismo, como Adoniran Barbosa, quanto jogar luz sobre desconhecidos do grande público. João Bosco, Renato Teixeira, Milton Nascimento e Zé Rodrix são alguns deles, mas, também, Guilherme Arantes, de quem Elis captou todas as nuances da rítmica e sinuosa “Aprendendo a Jogar”. Em consonância com a melodia, o compositor aplica o recurso do drible, para lançar à plateia versos que embaralham os ditados populares do Brasil. A música foi lançada em 1981.