Artes cênicas

A potência poética da loucura

Leonardo Rocha, do grupo Maria Cutia, se une ao diretor Eduardo Moreira em 'Engenho de Dentro'

Por Jessica Almeida
Publicado em 26 de outubro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Fica no bairro Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, o Museu de Imagens do Inconsciente. A instituição foi fundada em 1952, pela psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), que não aceitava tratamentos para transtornos mentais como eletrochoque, lobotomia e coma insulínico, comuns à época. Anos antes, ela havia criado a seção de terapêutica ocupacional no Centro Psiquiátrico Nacional, onde os pacientes desenvolviam atividades como pintura e modelagem. Essa produção acabou dando origem ao museu.

Sempre instigou o ator Leonardo Rocha, do grupo Maria Cutia, que justamente o local onde fica essa instituição se chamasse logo Engenho de Dentro. “Para além do fato de ter ficado extremamente impactado com as obras que vi lá, foi inevitável pensar o quão curioso era que o museu estivesse numa região cujo nome é uma analogia muito forte a como funcionamos, do que somos construídos, quais os nossos mecanismos, ferramentas”, afirma Leonardo, que por isso escolheu chamar de “Engenho de Dentro” seu solo, dirigido por Eduardo Moreira (Grupo Galpão) em terceira parceria com o grupo Maria Cutia, que estreia neste sábado (27).

Em cena, um homem confinado em um quarto. Em sua fala sarcástica e ácida, histórias delirantes, aventuras fantásticas e desvarios. Seu perseguidor imaginário assume distintas formas e personalidades num discurso cheio de memórias alucinadas. “O tema da loucura é muito instigante, e para mim sempre pareceu muito mais do que uma possibilidade de sofrimento, coisa assim, mas uma liberdade total do indivíduo. Claro que há dor, mas ao mesmo tempo há liberdade e talvez até por isso seja sofrido”, contextualiza.

Ponto de vista

O interesse de Rocha, porém, nunca foi retratar ou refletir sobre a visão da sociedade sobre esses indivíduos, mas inverter a lógica. Apresentar o “olhar do louco” em toda a sua potência poética. Para a construção do texto, assinado também por Eduardo Moreira, foram reunidas referências a obras de autores como Miguel de Cervantes (1547-1616), Anton Tchekhov (1860-1904), Nikolai Gogol (1809-1852), Machado de Assis (1839-1908) e F. Scott Fitzgerald (1896-1940).

“Além de todo o trabalho da Dra. Nise, fomos juntando essas referências literárias. Assim, fomos montando esse personagem que é recluso, mas vai contando seus devaneios. Na verdade, é uma apologia à poesia, ao seu poder libertador, que não se prende ao nosso mundo restrito”, pontua Moreira. “Não é um tratado ou estudo teatral sobre a loucura. É sobre um personagem que tem esse universo dele, um espírito libertador. Coisas contra as quais a vida normal ou normatizada que conhecemos luta contra, sempre querendo nos colocar num clichê, num quadrado”.

Os elementos cênicos ajudam a construir a metáfora da suspensão da realidade. Uma mesa, uma cama, uma cadeira, um biombo e um espelho são dispostos pelo cenário, não no chão do palco, mas pendurados por uma corda. A referência é uma exposição que Rocha visitou há alguns anos, chamada “Flutuações”, com obras de Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), em que as obras também ficavam suspensas. “São móveis antigos, com 50, 60 anos de história, ou seja, trazem consigo um enredo, porque já foram usados. De certo modo, eles materializam essas outras figuras com quem dialogo. Sempre levitando nessa realidade junto com o personagem”, explica.

O figurino, assinado por Julia Panadés, traz aplicadas técnicas de bordado e colagem de tecidos presentes na obra de Bispo do Rosário e Louise Bourgeois (1911-2010). Em conjunto, todos os elementos do espetáculo trabalham pela humanização do personagem. “É uma abordagem menos denunciativa, alguém que podia estar ao nosso lado, ou mesmo ser eu, você ou qualquer pessoa”, conclui o ator.

Serviço

“Engenho de Dentro”, novo espetáculo do Grupo Maria Cutia, solo de Leonardo Rocha, com direção de Eduardo Moreira (Grupo Galpão), no Teatro de Bolso do Sesc Palladium (av. Augusto de Lima, 420, centro, 3270-8100). Neste sábado (27), e de 1º a 4 de novembro. De quinta a sábado, às 20h; e domingo, às 19h. R$ 15 (inteira).

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