A trajetória não é linear e nem tão planejada assim. Mas, ao ver o ensaio aberto do próximo espetáculo do Quatroloscinco – Teatro do Comum, a sensação é de um diálogo com toda uma pesquisa que se iniciou com “É Só Uma Formalidade”, em 2009.

O caminho começa com a afetividade e aproximação com o público, algo que parece ter ficado em outro plano para que o grupo pudesse experimentar a provocação, o diálogo mais fechado e estranheza da última montagem, “Ignorância”, de 2015.

Da superfície e grosseiramente, “Fauna”, que tem data prevista para estreia em 24 de setembro, no Teatro Espanca!, é como um compilado de elementos do grupo, mas com intensa exploração do encontro e do convívio, que parecem marcar um ponto diferenciado em um caminho que já beira os nove anos de estrada.

“Eu sou Marcos Coletta, sou uma parte do Quatroloscinco”, afirma o ator no início do espetáculo, que reveza as duplas experimentadas no último trabalho. Marcos e Assis Benevenuto saem da direção e adentram o palco e Rejane Faria e Ítalo Laureano invertem as funções. Mas em “Fauna”, o premiado dramaturgo paulistano Alexandre Dal Farra rompe a cena com sua violência e provocações dramatúrgicas.

No jogo que o espetáculo apresenta, o choque e a afetividade criam aproximações e distanciamentos, se relacionam o tempo inteiro e destroem possíveis expectativas criadas. Embora a peça dê sinais de desconfortos para o público, desde o modo como somos convidados a entrar no teatro até aos primeiros movimentos dos atores, em uma coreografia que vai demonstrando o dedo de Rosa Antuña na equipe, o aviso não é suficiente.

As relações de aproximação que são criadas com público pelo humor e pela liberdade que são oferecidos, e até pela doçura de certos trechos do texto, nos deixam desprotegidos. Cavam uma abertura afetiva e nos deixam entregues para a angústia do rompimento que se segue.

O trabalho é exatamente aquilo que o grupo tem chamado de “peça-conversa”. É mesmo como um bate-papo entre cúmplices, mas sem perder de vista que as relações se constituem também nos enfrentamentos, o que dá à conversa um trânsito pela descontração, pelo confessional e pela turbulência.

Com inspirações no pensamento de Vladimir Safatle, no livro “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”, a peça consegue transpor, sem palestras, as reflexões filosóficas a partir das emoções que são provocadas e trazem, para a ordem das afetações, o sentido do político.
“Safatle fala de como a política é feita a partir de um circuito de afetações. E, pra pensar a política, é preciso repensar esses afetos e o cunho político dessas relações”, conta Marcos.

Corpo, marcas, história, identidade e rompimentos da esfera individual dialogam com o cenário da coletividade. Atores e público, em seus diferentes lugares, parecem estar no mesmo barco. Calçam os mesmos sapatos.

As dimensões do sujeito e do coletivo de sujeitos criam camadas que levam em conta as peculiaridades das esferas, mas não se dissociam e se relacionam sem hierarquia, embora as instituições apareçam pinceladas na dramaturgia, remetendo às instâncias de poder que suprimem a individualidade.

A quebra disso se dá naquela sacudida das lembranças que insistimos em ignorar: nossos corpos morrem e nossa espécie é apenas uma pequena parte do mundo, que pode, inclusive, ser extinta.

O interessante de um ensaio aberto são também as conversas e trocas de impressões que se dividiram entre a esperança e o desamparo a que chegamos quando refletimos sobre o que é a humanidade diante de um mundo.

Ao fim, resta ao público colocar os sapatos para andar de volta rumo à casa para dormir com um bando de angústias a serem digeridas. E o gesto de ir, de poder caminhar e “ir fazendo” já é um alento.

Discurso filosófico é traduzido em relações de desconstrução

FOTO: Mariana marinho / divulgação
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Alexandre Dal Farra acentua a desconstrução em “Fauna”

O trabalho de Alexandre Dal Farra, que cumpre o papel de provocador dramatúrgico no próximo trabalho do Quatroloscinco, é conhecido por sua dimensão política em uma abordagem stricto sensu, em especial na trilogia “Abnegação”, que carrega, entre outros aspectos, uma reflexão sobre o PT. Mas o senso do político também se dá em uma aproximação com o público que Alexandre explora pela violência. Talvez, por isso, ele tenha sido convidado a trabalhar com grupos que já trilharam uma estética pela afetividade e querem experimentar outro terreno, como aconteceu com o Grupo XIX de Teatro.

“Daí, eles me chamam para destruir tudo”, brinca. “Mas, com o Quatroloscinco, eu vejo que a peça tem as duas coisas. A aproximação, a afetividade e o contato de um lugar construtivo com o público, mas também uma vontade de provocar, reestruturar e desconstruir”, comenta Alexandre.

Ele conta que uma das referências que o grupo apresentou para ele foi uma palestra de Vladimir Safatle sobre a filósofa Judith Butler. “Ela pensa no encontro a partir de uma politização. Não de usar o outro para me afirmar, mas para me desconstruir. É o que ela chama despossessão, que, como eu entendo, é como pensar no que é uma sessão com um psicanalista. A última coisa que você quer é permanecer como está. Você quer do psicanalista que te escute e desconstrua as suas manias, seus discursos fechados. É o contato pela desconstrução”, comenta.

Para ele, esse conceito acaba sendo algo que possa traduzir as relações que são provocadas com a plateia. “O contato com o público talvez tenha a ver com buscar o prazer não na afirmação e no afetivo, mas de algo que também pode tirá-lo do chão, a partir do contato que é afetivo, mas que também provoca. Não é uma violência gratuita, não é a perversidade, mas é algo que tem a ver com quebrar padrões, coisas repetitivas”, reflete.

Os momentos de acirramento, no entanto, beiram o limite daquilo que pode reforçar ou romper os preconceitos, a depender da leitura de quem assiste. Mas, em fase de construção e experimentação diante do público, Alexandre e o grupo não se furtam em explorar essa interface. (JA)