Pixinguinha, Chacrinha, Bozo e Carlos Marighella irão viver novamente, graças à magia da sétima arte. Nomes como Roberto Carlos, Erasmo Carlos, o maestro João Carlos Martins, o fundador da Igreja Universal do Reino de Deus Edir Macedo e a trupe do Planet Hemp também terão suas trajetórias contadas na tela grande. Na verdade, transpor a vida de personalidades para o cinema não é novidade: no Brasil, já aconteceu com Olga Benário, Leila Diniz, Luz del Fuego ou Noel Rosa. Lá fora, com nomes como Mahatma Gandhi ou Frida Kahlo. Mas a quantidade de filmes trabalhados sob esse viés que estreia este ano revela que há algo de novo acontecendo no mercado.
Roteiro. Em 2016, por exemplo, a cinebiografia de Elis Regina levou 538 mil espectadores às salas de cinema, sendo a nona maior bilheteria de um filme nacional no ano. Protagonizado por Andreia Horta, a mimese da personagem impressionou leigos e especialistas, embora o longa não tenha sido bem recebido pela mídia especializada, que acusou a “opção claramente conservadora do ponto de vista cinematográfico, o que, aliás, é norma do cinema brasileiro atual”, como escreveu o crítico Inácio Araújo.
Luiz Bolognesi, roteirista do filme, ao lado de Hugo Prata (diretor) e Vera Egito, afirma que a maior dificuldade, em uma empreitada deste vulto, “é condensar em uma hora e meia uma vida que teve 36 anos, pois é preciso estabelecer um recorte e definir a linha que iremos seguir para contar a história”.
No caso de “Elis”, a opção foi priorizar a relação da intérprete com os homens, “desde o pai, passando pelos maridos (como Ronaldo Bôscoli e César Camargo), até os amantes, pois tiveram importância fundamental na obra dela, foram relações intensas e atribuladas que ela levou para a música”, considera.
Bozo. Premiado pelo roteiro de “Bicho de Sete Cabeças”, em 2001, em que contou a vida de um personagem real, mas desconhecido, Bolognesi passou por experiência peculiar ao roteirizar “Bingo: O Rei das Manhãs”, cuja inspiração é claramente a do palhaço Bozo, interpretado durante anos na TV brasileira por Arlindo Barreto. O longa estreia em agosto. “Desta vez, é a história de uma pessoa anônima para o grande público que vivia uma personagem conhecida mundialmente. O que intriga na trama é essa dicotomia entre a realidade e a fantasia”, afere.
A escolha por alterar o nome da personagem, aliás, deveu-se a motivos jurídicos, já que “o palhaço, uma marca estadunidense, possui seus direitos autorais protegidos por lei”, segundo o diretor Daniel Rezende.
Outra razão foi a vontade de “contar a história que a gente queria, sem nada relativo a marcas ou outras limitações do tipo que nos impedissem”, acrescenta o diretor. Apesar disso, o filme é considerado biográfico pela clara referência a momentos, pessoas e situações – tanto que Arlindo, chamado no filme de Augusto e interpretado por Vladimir Brichta, assinou contrato liberando o repasse de sua história, cujo sucesso junto ao público infantil contrapunha-se a uma vida que, longe dos holofotes, era marcada pelas drogas e pelas relações pessoais conturbadas.
Seu Jorge é Pixinguinha na telona
“Pixinguinha: Um Homem Carinhoso” diz muito sobre o Brasil. Além de retratar a história de um dos ícones da música – em especial do choro, considerado gênero estruturante e seminal de nossa canção – o longa tem previsão de chegar às telas em outubro, oito anos após sua idealização, pelo produtor Carlos Moletta. A demora decorreu de divergências com a Agência Nacional de Cinema (Ancine), que, de acordo com Moletta, “não aprovou o segundo orçamento”, o que resultou em uma interrupção das filmagens.
O cantor e compositor Seu Jorge viverá Pixinguinha dos 35 aos 76 anos, enquanto Taís Araújo dará vida à mulher do instrumentista na fase adulta. Allan Fiterman, codiretor da iniciativa encabeçada por Denise Saraceni, atribui o êxito das cinebiografias “a uma curiosidade natural do ser humano”. “Conquistas e derrotas de pessoas com notoriedade nos interessam”, garante. Além do cinema, o autor de “Carinhoso” (com Braguinha), “Rosa” (com Otávio de Sousa) e outros clássicos vai inspirar uma minissérie da Globo em 2018.
Profissionais da área refletem sobre receitas de sucesso na telona
Para Ataídes Braga, mestre em Cinema pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e graduado em história na mesma instituição – além de ator, poeta, diretor e roteirista –, não existe uma fórmula de sucesso garantido quando se trata de cinebiografias. “São várias as possibilidades, alguns apostam em nomes de pessoas conhecidas, outros, em figuras históricas, e outros, ainda, nas chamadas ‘celebridades’”. Braga rechaça a tese de que o cinema nacional priorize biografias de figuras ligadas à música, embora admita “o efeito gerado pelo forte apelo popular, por se tratar de nossa arte mais expressiva em termos de reconhecimento”.
Como exemplos dessa diversidade a que se refere, ele lista: “‘O Bandido da Luz Vermelha’, ‘Xica da Silva’, ‘Anchieta: José do Brasil’, ‘Carlota Joaquina: Princesa do Brazil’, ‘Eternamente Pagu’, ‘Aleijadinho: Paixão, Glória e Suplício’, dentre tantos outros”.
Gênero. Mesmo com a proliferação recente das biografias em cinema, teatro e TV – vide minisséries e musicais voltados a retratar Tim Maia, Elis Regina, Cássia Eller, Cazuza etc – Braga não acha que já é pertinente falar em “gênero”. “Um subgênero, talvez, que pode se enquadrar entre comédia, drama, filme histórico, registro documental ou misturar vários deles. O que define um gênero são os elementos que permanecem, a identificação com o padrão narrativo e as características das personagens”, argumenta.
L. G. Bayão, roteirista de “Minha Fama de Mau” – longa que estreia neste ano com Chay Suede no papel de Erasmo Carlos – reforça a tese. Além de ter escrito o roteiro de “Irmã Dulce” e “Heleno”, está envolvido em outros dois filmes, previstos para 2018. “É sempre um prazer escrever uma cinebiografia, porque você nunca está confinado a um gênero só, geralmente, a vida do biografado te aponta o tipo de filme que vai ser produzido”.
“Minha Fama de Mau”, por exemplo, vai ser um musical rock’n’roll, enquanto “Kardec”, “um suspense que emociona”. “São muitas possibilidades”, assegura ele. “A Onda Maldita”, o outro filme com roteiro de Bayão, conta a história de Luiz Antônio Mello, criador da rádio Fluminense, estação fundamental na divulgação do rock brasileiro na década de 80. Segundo ele, será “uma comédia maluca”.
Fascínio. O fascínio do público por biografias, na visão do ator Marcos Breda, vem dos tempos de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), que vinculava o “imitar a algo congênito”. Esta correlação, segundo o ator, tem sua premissa “no voyeurismo”. “Existe desde sempre o desejo de desvendar a intimidade alheia. A expressão ‘minha vida daria um filme’, às vezes, é bem verdadeira. Com a ajuda de um bom roteirista, claro”, diverte-se. Louise Cardoso, que interpretou Leila Diniz no cinema em 1987, afirma que “com todo o material de pesquisa no subconsciente procurei criar o que meu coração, o mar e a areia traziam dela”.