Música

Campeão do Duelo de MCs, Cesar MC estourou no país com 'Canção Infantil'

Capixaba, ele cursou matemática e agregou um arranjo acústico ao seu rap

Por Raphael Vidigal
Publicado em 22 de outubro de 2019 | 02:00
 
 
 
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A morte da menina Ágatha Félix, 8, aconteceu cerca de três meses depois de o videoclipe “Canção Infantil”, de Cesar MC, 22, viralizar nas redes sociais e superar 15 milhões de visualizações. Ágatha foi atingida por um disparo de fuzil no Complexo do Alemão, na zona Norte do Rio de Janeiro, durante uma ação policial, e não resistiu. Nascido e criado no Morro do Quadro, no Espírito Santo, Cesar começou a escrever, em 2017, a poesia que iria resultar no aclamado videoclipe.

Apesar das distâncias temporais e geográficas, as vidas de Ágatha e Cesar parecem dialogar. Na última cena de “Canção Infantil”, uma menina negra, de cabelos cacheados, coloca a mão no ombro do rapper, que tem a camisa ensanguentada. Em determinado trecho da canção, ele dispara: “Motivos pra chorar até a bailarina tem/ O início já é o fim da trilha”. Em um desabafo emocionado logo após perder a neta, o avô de Ágatha declarou à imprensa que ela “falava inglês e fazia aulas de balé”. 

“Não gostaria de escrever esse tipo de verso, escrevo porque é real”, resume Cesar. Ao longo da letra, ele faz referências à chacina de Costa Barros, na zona Norte do Rio, quando 111 tiros deram fim à vida de cinco jovens negros, em 2015; e ao caso dos 80 disparos feitos por soldados do Exército, que culminaram com a morte de um músico e um catador de lixo, em abril deste ano, também na capital carioca. “É um cotidiano que se repete, e a gente tem que gritar, por meio da arte, o óbvio, porque as pessoas não estão escutando. O direito à vida nos tem sido tirado de forma violenta, imprudente e inconsequente. A segurança deveria nos proteger de forma igualitária”, protesta Cesar. 

Início

A ligação do MC com a arte começou pela palavra. Ele revela que “desde sempre tinha uma coisa íntima de escrever”. “Não havia um objetivo musical, era quase como se fosse um diário”, conta. Em 2014, ele tomou conhecimento do Duelo de MCs, criado em Belo Horizonte e disputado debaixo do viaduto Santa Tereza, na região centro-sul da cidade. Foi quando o hip-hop entrou no radar de Cesar e ele começou a se envolver com o freestyle, gênero de improvisações. Naquela época, o jovem rapper não imaginava que, três anos depois, se sagraria campeão do Duelo de MCs, ao derrotar, na final, o mineiro Drizzy. 

A vitória o levou ao Slam BR: Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, em São Paulo. Na ocasião, Cesar resolveu levar ao palco “versos despretensiosos”, que um dia lhe vieram à cabeça quando ele refletia sobre “infância e amadurecimento”, recorda. “Quando recitei essa poesia, vi que as pessoas se identificaram, sentiram uma verdade. Guardei ela com carinho e, neste ano, entendi que era o momento de lançá-la como música”, diz. Ao ser registrada na nova versão, “Canção Infantil” ficou conhecida no Brasil como um “rap pra chorar”.

“É um desabafo. As qualidades da infância, como fé, sonho, força, coragem e o jeito destemido de acreditar vão se perdendo com o amadurecimento nesse mundo difícil e duro”, opina o compositor. Para provar seu ponto, Cesar relacionou a realidade a contos e histórias infantis, a fim de mostrar o quão “intensa e literal é a transformação que acontece aos olhos de uma criança quando ela passa a vivenciar tragédias”, explica. 

A primeira parte da música, aparentemente amena, alude à clássica “A Casa”, de Vinicius de Moraes, e traz um arranjo acústico. “A ideia era que a poesia ficasse em primeiro plano, por isso optamos por uma linha bastante melódica”, afirma Cesar. Para auxiliá-lo nos vocais, ele convidou a cantora mineira Cristal Korres e o grupo Serenata Canto Coral, de Vitória. O difícil amadurecimento citado por Cesar se repete na estrutura da faixa. 

“Eu brincava de polícia e ladrão um tempo atrás/ Hoje ninguém mais brinca/ Ficou realista demais”, canta ele no videoclipe. É o estopim para o enfrentamento de um mundo brutal e inclemente. “Me inspiro nas minhas vivências. Vi amigos meus morrerem. Todo mundo que mora dentro de uma comunidade absorve situações, das mais tristes às mais alegres. O universo que rodeia a gente é essencial para desenvolver esse lado sentimental da poesia”, observa.

Nessa caminhada, ele cursou matemática na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mas abandonou o curso para se dedicar integralmente ao rap. “A música tem origem na história da matemática, durante a graduação estudamos isso”, informa. Fã de Mano Brown, Emicida e Legião Urbana, Cesar é testemunha do cenário para o gênero no Espírito Santo. 

“Sempre estivemos fora do eixo, mas está rolando um crescimento que dá orgulho, com muitas batalhas”, garante ele, que prepara um álbum e quer “seguir batendo em teclas urgentes”. “É um momento singular do Brasil. Esse pensamento parcial, radical e agressivo tem resultado em muitas tragédias. A falta de empatia e a idolatria a uma figura que não tem nenhuma capacidade para dialogar me assustam muito. O alvo tem sido o povo periférico, e as consequências são irreversíveis. Tenho medo dos próximos capítulos. Se o nosso sangue não chama a atenção para a forma como Brasil está sendo gerido, o que mais será preciso?”, questiona. 

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