Segundo o dito popular, é preciso saber rir das tragédias. Mas o que fazer quando os infortúnios fazem da gente um “palhaço” – no sentido pejorativo da palavra? Cada um pode rir de si, mas tornar-se motivo de riso do outro é bastante doloroso. “Coringa”, longa sobre o surgimento do supervilão dos quadrinhos, mostra um homem atormentado por essa dor. Vítima da violência social e de uma condição psiquiátrica, ele reage. Essa atitude extrema faz com que ele, finalmente, erga a cabeça. “Coringa” é uma alegoria. É um filme forte, impactante, violento, em muitos aspectos, e incrível, ainda mais no universo dos quadrinhos.

É bem necessário dizer que o longa, dirigido por Todd Phillips (“Se Beber, Não Case”), não seria o mesmo sem Joaquin Phoenix. A interpretação desse grande ator torna o filme único. É impossível para o público desgrudar os olhos da tela, tamanha a hipnose que causa o Arthur Fleck construído por Phoenix. Muito se falou sobre a perda de peso do ator para viver o Coringa – foram mais de 20 kg –, mas a magreza não é tão impressionante quanto a postura do ator. Arthur Fleck é curvado, pequeno, duro, perdido e constrangido em meio à sua psicose. Já o Coringa é ereto, maleável, confiante, poderoso. Ele se alimenta da violência para disfarçar suas fraquezas. O riso nervoso, doentio, dá lugar à gargalhada, e o que era psicose vira psicopatia. Nasce o vilão. 

Nas HQs há muitas versões para o surgimento do Coringa. Em uma das mais populares, o bandido cai num tonel de produtos químicos e fica com a pele branca e seca e os cabelos verdes. Essa é a explicação simples. O quadrinista Alan Moore, no entanto, foi mais fundo. Em “Batman: A Piada Mortal”, ele trouxe esse passado trágico e psicótico do vilão, com passagens por sanatórios. Moore, que assina também “V de Vingança” e “Watchmen”, explora bem a questão do caos social em suas obras. E o filme “Coringa” bebe bastante dessa fonte. 

No longa, Arthur Fleck é um homem solitário, que vive com sua mãe num apartamento miserável de Gotham City e faz bicos como palhaço. Ele recebe apoio e medicamentos do serviço de assistência social da cidade, pois tem um distúrbio psiquiátrico que faz com que ele tenha um riso incontrolável. A situação na cidade, porém, é de caos. A população está cada vez mais desamparada, e a desigualdade social é crescente. 

A mãe de Arthur, Penny Fleck (Frances Conroy), sempre diz que o poderoso empresário Thomas Wayne (Brett Cullen) vai ajudá-los. Porém, quando o ricaço decide se candidatar à prefeitura, Arthur faz uma descoberta e vai atrás de seu passado. Nesse momento, duas verdades lhe são apresentadas e ele vê sua esperança se transformar em desespero. Wayne é elitista. Para ele, a pobreza é uma condição inata, como se a sociedade fosse dividida em castas. Ele chama os pobres de “palhaços”, e seus comentários na televisão reforçam essa bipolaridade na sociedade – qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência?

A televisão como mídia de massa ocupa um lugar importante na trama, com Robert De Niro na pele de Murray Franklin, um popular apresentador e humorista, ídolo de Arthur, que o usa para alavancar risos de sua plateia. Até quando? Arthur não pretende mais ser o palhaço. 

Polêmica

“Coringa” ganhou o Leão de Ouro em Veneza, e Phoenix tem sido muito elogiado por sua performance. No entanto, alguns especialistas têm feito uma forte campanha contra o filme, alegando que “Coringa” incita a violência e transforma o vilão em vítima. 

A verdade é que a violência está, sim, por todo o filme. Ao cortar verba do serviço de saúde e assistência social, a prefeitura de Gotham City comete um ato de violência contra a população mais pobre, que depende de atendimento gratuito e medicamentos. A desigualdade social é uma violência. Ao submeter um doente psiquiátrico a tantas pressões econômicas e sociais, o governo é violento. Arthur Fleck reage dentro dessa alegoria de forma extrema. Nenhuma violência é justificável, e, por isso mesmo, ele é um supervilão, e não herói.

“Coringa” traz a violência, causa um desconforto no espectador, mas propõe uma reflexão política e social. É ficção baseada em HQ, mas não está assim tão distante da nossa realidade.