Qual seria o destino dos agentes da repressão com o fim do regime militar? Para onde migrariam, a fim de manterem suas posições de poder e abonadas condições financeiras? A resposta está no jogo do bicho e nas escolas de samba do Rio de Janeiro, cujos mecenas já eram, tradicionalmente, os bicheiros. Cooptados pela contravenção, ex-torturadores eram o quadro perfeito para fazer a segurança pessoal dos líderes da jogatina, além de instaurar a disciplina militaresca, o medo e a violência desmedida como modus operandi do jogo do bicho.
Fruto de um árduo processo de apuração conduzido pelos jornalistas cariocas Aloy Jupiara e Chico Otavio, a descoberta deu cria a uma série de reportagens para o jornal “O Globo”, onde ambos trabalham. O vasto material apurado acabou desdobrando-se para o livro “Os Porões da Contravenção: Jogo do Bicho e Ditadura Militar: A História da Aliança que Profissionalizou o Crime Organizado”, que os autores lançam hoje, em Belo Horizonte, no Sempre um Papo.
Aloy Jupiara conta que a primeira pista veio durante a apuração de uma matéria sobre as escolas de samba cariocas. “Estava fazendo uma pesquisa sobre o Carnaval e encontrei uma menção sobre um agente da repressão que, depois do regime militar, passou a ser segurança do Anísio Abraão David (poderoso bicheiro carioca e patrono da Beija-Flor)”, afirma. Jupiara, então, falou da pista com o colega de redação, que tem um longo histórico de coberturas sobre as barbáries do regime militar em “O Globo”.
“Fiquei pensando se seria um caso isolado, e comentei com o Chico. Ele disse que estava apurando algo parecido, e que parecia que vários agentes da repressão tinham sido, de fato, cooptados pelos bicheiros para trabalhar como seguranças ou na guerra nas ruas”, conta Jupiara. A partir desse momento, a dupla começou a escarafunchar documento do Arquivo Público do Rio de Janeiro e a fazer entrevistas para levantar nomes de agentes da repressão que foram trabalhar para bicheiros.
Além de Anísio, o livro se apoia nas história de outros dois famosos bicheiros: Castor de Andrade, benfeitor da Mocidade Independente de Padre Miguel; e Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, ex-militar que, após a redemocratização, tornou-se um dos grandes contraventores do Rio, às custas de muito sangue derramado, e também foi presidente da Vila Isabel e patrono da Viradouro.
“Capitão Guimarães era, efetivamente, um capitão do Exército, envolvido com os porões da ditadura. Logo no início dos anos 80, ele já era dono de várias bancas de jogo em Niterói”, conta Jupiara, lembrando que a apuração identificou pelo menos dez agentes da repressão que trabalharam com bicheiros. “Eles estavam ali por conta da experiência que já tinham com o universo que circula a contravenção. A corrupção, a violência, a arbitrariedade, a disputa de territórios”, completa o jornalista.
Jupiara conta que, não por acaso, ainda em 1984, ano que marca o fim da ditadura, o trio de bicheiros cria a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), no Rio. “Na passagem para a democracia, eles precisavam de uma fachada para suas operações ilegais e para terem um canal como poder público. Precisavam de um canal oficial e ilegal pra conversar com agentes públicos, e a Liga fazia esse papel”, sublinha.
O jornalista explica, ainda, a origem da relação entre os bicheiros e o Carnaval. “No início, as escolas de samba eram muito pobres. Os sambistas corriam pelas comunidades com um ‘livro de ouro’, pedindo doações. Quem doasse tinha o nome anotado. Os bicheiros já ajudavam, mas não tinham um papel predominante”, diz. “Mas nos anos 70, os bicheiros percebem que o Carnaval estava ficando popular, atraindo muitos turistas, e começam a entrar nas escolas como patronos ou presidentes. Percebem que era um espaço para que eles obtivessem maior aceitação da sociedade e, ao mesmo tempo, terem uma garantia de poder sobre seus territórios”, completa.
Assim, Anísio, que era de Nilópolis, se tornou patrono da Beija-Flor; Castor, que vivia na Zona Leste do Rio, entrou na Mocidade Independente; e Capitão Guimarães se envolveu com a Vila Isabel. “Eles apoiavam as escolas para garantir que elas ganhassem e, com isso, ainda ficavam mais populares em suas regiões, criando uma espécie de bolsão de proteção”, diz. “Fica, então, cada vez mais comum as escolas serem dominadas por bicheiros, que tinham como capangas ex-torturadores. Só que isso se tornou outra ditadura. São eles quem lidam com o dinheiro, quem determinam os enredos, os desfiles. Os próprios sambistas perderam o poder”, completa.
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Da ditadura ao jogo do bicho
Jornalistas cariocas Aloy Jupiara e Chico Otavio lançam hoje, no Sempre um Papo, o livro “Os Porões da Contravenção”
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