O Brasil vivenciava a campanha pelas Diretas Já, após duas décadas de ditadura militar, quando perguntaram ao cartunista mineiro Henfil (1944-1988), em 1984, o que era humor. A resposta: “É reversão de expectativa. Eles querem que a gente morra, aí a gente vai e vive”. É basicamente o que afirma o rapper Djonga, 25, embora a temática seja outra e as palavras também, na letra de “Não Sei Rezar”: “Vingança vai ser ficar vivo”.
A faixa integra o seu mais novo álbum, que acaba de ser lançado. A exemplo dos três discos anteriores, “Histórias da Minha Área” chegou às plataformas digitais num dia 13 de março, “pra provar que um raio cai de novo no mesmo lugar”, como canta Djonga em “Oto Patamá”, outra canção inédita. “13 é Galo”, justifica o rapper, deixando clara a sua paixão pelo Clube Atlético Mineiro.
“O Djonga representa essa nova fase do rap brasileiro, que seria uma espécie de terceira geração. Tivemos os precursores com Racionais MC's, Facção e GOG; seguida por Emicida e Criolo, que promoveram uma profissionalização do gênero; e agora temos essa galera marcada pela descentralização, que tem o Baco Exu do Blues na Bahia, o Dom L no Ceará e o Djonga em Minas, como grandes representantes”, analisa Acauã Oliveira, professor de Literatura na Universidade de Pernambuco e autor do prefácio do livro “Sobrevivendo no Inferno” (2018), que passou a limpo a trajetória do Racionais.
“O Djonga é um dos artistas mais interessantes que surgiram no rap nos últimos anos, inclusive em termos de produtividade. Ele mantém um nível muito alto nas composições, com uma base sonora mais seca e uma linguagem poética, crua, que ele domina com sagacidade. Ele elabora versos muito emblemáticos, cortantes, que viralizam, como ‘fogo nos racista’. Essa capacidade de criar imagens de impacto aparece também nas capas dos álbuns dele e, nesse sentido, não vejo nenhum rapper parecido”, completa Oliveira.
Estouro. Nascido em Belo Horizonte, na Favela do Índio, e criado no bairro de São Lucas, na Zona Leste, Djonga se tornou uma verdadeira sensação da cultura nacional, apontado por críticos e fãs como o nome de maior expressão da capital mineira desde o fenômeno do movimento Clube da Esquina, nos anos 70. O músico recebeu os discos de platina e platina duplo pelos álbuns “Heresia” (2017) e “O Menino que Queria Ser Deus” (2018). Somados, os trabalhos superaram 160 milhões de visualizações.
Em apenas uma semana, “Ladrão” (2019) bateu a casa das 15 milhões de reproduções na internet. “Histórias da Minha Área” não ficou atrás. Atualmente, alcança 3 milhões de visualizações no Spotify em três dias, e 13 milhões no YouTube, em uma semana. “O fenômeno Djonga acontece a partir do momento que seu discurso é mais do que necessário, pois é identificação direta com grande parte dos brasileiros”, acredita Heloisa Aidar, da Altafonte Brasil, distribuidora digital do artista.
Feitos. A prova de que tudo o que Djonga toca atualmente se transforma em ouro segue expressa em números. Em poucos segundos ele ficou em primeiro lugar nos assuntos mais comentados do Twitter assim que suas novas canções invadiram as redes. Para o próprio artista, no entanto, esse reconhecimento chegou de forma mais calorosa e humana. Dentro da sua quebrada, Djonga divulgou vídeos com as reações das pessoas ao lançamento, comemorando com cerveja e churrasco e soltando rojões.
“Foi um momento de alegria, que sinto sempre que estou com meus amigos, as pessoas que amo, essa é a maneira certa de comemorar. Ficou mais especial porque, hoje em dia, a gente pode celebrar com mais fartura, e estamos celebrando a arte, nada mais do que isso”, afiança.
Esse sentimento de pertencimento se revela logo na capa do CD, que Djonga define como “bem direta”. Ao lado de amigos de infância, que têm a imagem duplicada como ele, o anfitrião e seus pares surgem em um beco, em duas situações distintas: numa, estão de pé; na outra, no chão, baleados. “Quem é de lá entendeu, quem não é, com o tempo entende. Tomara que tenha tocado as pessoas”, deseja ele, que faz questão de exaltar o fotógrafo Daniel Assis, o artista visual Alvinho e o grafiteiro Goma, parceiros na produção da imagem.
“Todas as capas dos meus discos são ideias minhas que chamo amigos para ajudar a desenvolver. Não é de hoje que eles estão comigo”, informa o compositor. Por outro lado, companheiros que não estão mais presentes são homenageados em “Não Sei Rezar”, do mantra “Vingança vai ser ficar vivo”.
“Falar sobre esses amigos é mais uma homenagem, uma reflexão e um recado que eu mando para os moleques mais novos não entrarem nessa, porque o final, normalmente, não é bom”, lamenta Djonga. Ao narrar a história de Joquinha, que se envolveu com o tráfico de drogas, o rapper diz: “A última lembrança que eu tenho desse irmão/ É lágrima e caixão fechado e não dias de glória”, ao mesmo tempo em que avisa: “Enquanto não houver justiça pra nós/ Juro que pra vocês não vai ter paz”. “Não é uma realidade só minha, várias pessoas vão se identificar”, garante. “Trocar ideia sobre qualquer aspecto fundamental da vida é o que me dá sentido para viver”, completa.
Encontros. Ao trocar um de seus 18 filhos por uma égua, o canto invade a dolorosa cena: “Nem é cedo demais pra saber/ Que a vida é desgraçada aqui”, entoa a mãe, interpretada pela atriz e cantora Bia Nogueira. A criança se tornaria símbolo de um Rio de Janeiro em ebulição, com uma vida marginal e noturna de colocar inveja aos maiores bambambãs do Estado. Seu “nome de guerra”: Madame Satã (1900-1976), capoeirista e transformista nascido no sertão pernambucano.
Bia repete a icônica fala, oriunda do musical “Madame Satã”, na abertura do mais recente disco de Djonga. “Essa frase traduz toda a ideia do disco, fala da minha área e de todas as áreas do Brasil, e a Bia vem como uma entidade mandando o recado”, conta o rapper, que protagonizou a aclamada montagem, em cartaz desde 2015, no ano passado, quando se juntou ao Grupo dos Dez. “Pude aprender um pouco mais sobre teatro negro, ao lado de pessoas maravilhosas, que ganharam inúmeros prêmios. E falando sobre um ‘veado’, preto, que ao mesmo tempo era um malandro da Lapa, uma figura ambígua ‘pra caralho’”, empolga-se.
Bia entrega que a ideia de participar da peça partiu de Djonga. “A gente se conheceu por conta do festival Imune (Instante da Música Negra). Marcamos uma reunião eu, ele e a Maíra Baldaia e ele topou ser nosso parceiro. O Djonga é um cara muito acessível. A gente é parecido, gostamos de fomentar a cena cultural da cidade. Começamos a trocar ideia e, quando a Maíra disse que eu era diretora do espetáculo ‘Madame Satã’, ele nos mostrou que tinha uma tatuagem do Madame no braço e pediu para participar”, recorda.
De outra feita, os dois estavam em um bar quando o músico fez um convite a Bia. “A gente já tinha tomado umas, e eu pensei que era papo de bêbado, nem toquei mais no assunto. Aí, quando ele foi gravar o disco novo, disse que não era por causa da bebida não, que ele queria que eu gravasse uma participação”, revela a entrevistada, que também realiza uma suave voz de ninar em “Procuro Alguém”.
Outras participações especiais acontecem em faixas como “Gelo”, com NGC Borges e FBC, “Mania”, com o MC Don Juan, e “Deus Dará”, que traz a cantora Cristal. “Convidei pessoas com quem tenho afinidade pessoal e musical”, declara Djonga. “O FBC é ‘meu irmão’. A gente briga, fica sem conversar, volta, faz música, briga de novo”, exemplifica. “São pessoas que têm um trampo que tem a ver com o meu. Esse disco está com mais cara de quebrada, treta”, sublinha. Nesse sentido, o funk também marca presença. “É o que a galera mais ouve na minha área”, atesta Djonga.
Fama. O disco se encerra com uma mensagem de áudio recebida pelo celular, enviada por Marcola, um dos amigos de Djonga que aparece na capa. “Fazer arte é maravilhoso, entre amigos, mais ainda. A gente se diverte juntos mandando nosso recado.Com toda dor e peso, ainda conseguimos sorrir, senão ninguém aguenta. Não pode ser só choro”, acredita.
A “vontade de ser artista” foi despertada em Djonga por sua tia Fia, que o apresentou a Cazuza. Mais tarde, ele se interessou novamente pela obra do “poeta exagerado”, ao se deparar com uma versão do MC Smith para “Vida Louca Vida”, música de Lobão e Bernardo Vilhena, eternizada na voz de Cazuza. Nessa época, ele passava as tardes assistindo a filmes, documentários e ouvindo canções do autor de “Maior Abandonado” no MP3. Foram os passos iniciais na carreira do cantor, que ainda atendia pelo nome de Diogo.
Trajetória. Desde que colocou os primeiros trabalhos na praça, em 2015, a rotina de Djonga mudou bastante, algo que fica explícito nas milhões de visualizações que ele acumula no YouTube. Apesar disso, ele procura conservar velhos hábitos e ainda frequenta a mesma barbearia da infância, onde costuma repaginar o visual.
“Hoje tenho mais consciência de todo o processo musical, amadureci em relação à parte estética, lírica. A responsabilidade aumentou, mas mantenho a coragem e os pés no chão”, assegura. Em “Oto Patamá”, Djonga cita ídolos do futebol, como Neymar e Bruno Henrique, para abordar o sucesso. “Trato a fama como ela tem que ser tratada, é apenas mais uma questão num universo de um milhão de coisas que compõem a minha vida. O grande lance é ter humildade, seja você famoso, lixeiro ou médico. Tenho problemas e qualidades que não estão relacionadas à música”, observa.
Paternidade. Há 4 meses, Djonga tornou-se pai pela segunda vez, dessa vez de uma menina. Iolanda é irmã de Jorge, de 4 anos. Ele aprendeu na prática algumas diferenças. “O universo feminino é outro, o amor que sinto pelos meus dois filhos é igual, mas, na hora de limpar a minha filha, preciso tomar mais cuidado porque, se eu for em certa direção, posso deixa-la com uma infecção urinária”, conta. “Ela trouxe muita leveza e luz para nossa casa”, celebra o músico, que se inspirou nessa experiência para compor “Procuro Alguém”.
Ele espera que os seus filhos vivam em um mundo melhor e mais justo, mas não tem visto grandes perspectivas nesse sentido. “Fogo nos racistas”, um de seus versos mais incisivos, passou a ser usado como hino a favor da igualdade. “A menos que a pessoa tenha alguma questão mal resolvida, o racismo é o ódio pelo ódio, é injustificável. Em alguns pontos, nós evoluímos, mas, em outros, parece que retrocedemos. O importante é seguir lutando e não deixar a peteca cair”, conclama ele, que mantém o discurso direto ao analisar a atual política brasileira.
“Na minha visão, está uma ‘merda’, com discussões infantis, pobres, que não constroem e nem levam a lugar nenhum. Acho que falta um engajamento real. Saber, de fato, quem são os grupos políticos que mandam e ir atrás deles. Não sou contra a polarização, a disputa, se for na treta, que seja, mas, com maturidade, sem agressões gratuitas. Precisamos dar um passo à frente nas ideias e evoluir, com argumentos mais consistentes”, finaliza Djonga.