Nas roupas, na temática dos filmes selecionados, nas conversas no café da manhã ou mesmo nos discursos de atores e atrizes, diretores e diretoras, a discussão política é central no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Há duas semanas do primeiro turno da eleição presidencial, com o país polarizado, o festival criado pelo professor da Universidade Federal de Brasília Paulo Emílio Salles Gomes, em plena ditadura, contribui para reflexão sobre o momento político atual.

A seleção de filmes inclui desde Torre das Donzelas, sobre as presas que dividiram cela com a ex-presidente Dilma Rousseff durante a ditadura, até Bloqueio, sobre a greve dos caminhoneiros desse ano, além de vários outros com temáticas sociais, Bixa Travesty (gênero), Liberdade (imigração), Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados (habitação) etc.

“Essa é a tradição do festival, desde a sua criação, inclusive por estar na capital do país. Essa pegada da relação com as questões políticas, temáticas do país são centrais. Essa é uma parte do que esse festival é. Esse é o DNA. Essa relação com o político e com o social nunca se perde”, afirma Eduardo Valente, diretor artístico do festival.

Sobre a importância da arte, e em especial do cinema, no entendimento do momento político brasileiro, Valente diz entender ser um ponto de vista diferente do cotidiano, encontrado no jornalismo ou no ativismo político, que buscam uma informação mais direta, diz ele. “A lógica do cinema e da arte em geral é a lógica da reflexão, do olhar, às vezes do distanciamento, às vezes do mergulho, mas sempre num outro tempo, numa outra forma de aproximação”, completa.   

O teor político do festival inclui a presença de mulheres na direção de seis dos nove longas que concorrem ao prêmio principal, e também em outras categorias, além da participação de negros e mulheres nos júris e nas comissões que selecionam os filmes.

Entre as atrizes negras, a mineira Grace Passô, que interpreta Juliana no filme do também negro, André Morais de Oliveira. Na apresentação do filme, ela aproveitou para pedir a soltura do ex-presidente Lula e fez campanha contra o candidato Jair Bolsonaro. “Por mais pretas e pretos no cinema para que a gente consiga de fato expandir com o imaginário simbólico da sociedade brasileira. Espero que a gente como fazedor e fazedoras de arte consiga se movimentar na contramão dessa ascensão de discursos tão conservadores na nossa arte e na nossa sociedade”, disse sob aplausos.

Confira alguns dos filmes que competem na mostra principal:

Domingo, de Clara Linhart e Fellipe Barbosa

1º de janeiro de 2003. Enquanto Brasília celebra a posse do Presidente e ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, duas famílias do interior gaúcho se reúnem em uma velha mansão rural para um churrasco regado a champanhe, segredos, anseios e frustrações familiares. Domingo poderia ser um dia qualquer – não fossem os hormônios dos adolescentes, uma chuva repentina e uma caixinha de cocaína esquecida no armário da dona da casa.

Bixa Travesty, de Kiko Goifman e Claudia Priscilla

Um filme sobre a artista Linn da Quebrada, “bixa, louca, preta, favelada”, como ela canta em uma de suas músicas. Linn está pronta para desconstruir preconceitos e transgredir normas, utilizando sua música como arma contra o machismo e o conservadorismo de nossa sociedade. O corpo político da cantora é a força motriz desse documentário que revela a personagem em sua esfera pública e privada, ambas marcadas não só pela presença de palco, mas pela incessante luta pela desconstrução de estereótipos de gênero, classe e raça. O filme, construído a partir dos shows de Linn, imagens de arquivo e momentos mais intimistas, traz a dimensão de um universo que se atualiza a partir de um corpo que se transforma, um corpo político.

Bloqueio, de Victória Álvares e Quentin Delaroche

Maio de 2018. A cinco meses da eleição presidencial brasileira, o país está mergulhado em uma crise política e econômica. Nesta atmosfera de tensão social, caminhoneiros decidem fazer uma paralisação em busca de melhores condições de trabalho. Em meio ás reivindicações da classe de trabalhadores, surgem cada vez mais vozes pedindo uma intervenção militar.

Los Silencios, de Beatriz Seigner

Núria, 12, e Fábio, 9 anos, chegam de madrugada com a mãe, Amparo, 40, a uma ilha desconhecida na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Estão fugindo dos conflitos armados na Colômbia e, ali, descobrem que seu pai, supostamente morto num deslizamento de terra de uma mineradora, se esconde em uma das casas de palafitas onde passam a morar. Com medo de trair esse segredo de família, Núria emudece, enquanto Fábio parece conviver com isso sem problema algum. Em meio a esse processo, a família tenta receber uma indenização pela morte do pai e obter um visto para fugir para o Brasil. Ao encobrir essa história, descobrem mais sobre o passado da família, intrincados nos conflitos armados que duram mais de meio século na Colômbia. Aos poucos, descobrem que a ilha onde estão é povoada por fantasmas, que se unem para interferir no destino dos vivos.

Torre das Donzelas, de Susanna Lira

Há desejos que nem a prisão nem a tortura inibem: liberdade e justiça. Há razões que nos mantêm íntegros mesmo em situações extremas de dor e humilhação: a amizade e a solidariedade. Torre das Donzelas traz relatos inéditos e surpreendentes da ex-Presidente Dilma Rousseff e de suas ex-companheiras de cela do Presídio Tiradentes, em São Paulo. Elas estiveram presas juntas na década de 1970 na Torra das Donzelas, como era chamado o conjunto de celas femininas do presídio. O filme remonta, a partir de fragmentos de lembranças de cada uma delas, uma instalação semelhante ao espaço do cárcere onde estiveram presas. Nesse cenário elas se reencontram 45 anos depois para romper com o silêncio e o medo de relatar os horrores de viver sob uma ditadura. Torre das Donzelas é um exercício coletivo de memória feito por mulheres que acreditam que resistir ainda é o único modo de se manter livre. O filme se aventura pelo campo experimental do documentário de reinvenção, tomando como referência algumas ferramentas do psicodrama, articuladas num jogo de reconstrução cênica com o apoio de uma instalação de arte semelhante ao ambiente de uma prisão. A partir de desenhos feitos por cada uma delas e nenhum parecido com o outro, o filme cria um campo de subjetividade ao erguer um espaço cinematográfico em que silêncios, pausas e reticências são tão importantes quanto as palavras.

Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados, de Aiano Bemfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo e Pedro Maia de Brito

O filme mostra como se dá a ocupação de um espaço urbano pelo Movimento de Lutas dos Bairro, Vilas e Favelas (MLB) em Belo Horizonte. O espectador é lançado para dentro do movimento e convidado a entender o processo da ocupação.

Liberdade, de Pedro Nishi e Vinícius Silva

Abou é um artista guineense que vive com outros imigrantes africanos em uma pensão no bairro da Liberdade, em São Paulo. Entre eles, vive Satsuke, uma mulher japonesa misteriosa que parece estar na casa há muitas décadas. Sow, um jovem guineense, está tentando chegar na casa para começar uma vida no Brasil, mas fica preso na imigração no aeroporto. Vidas estrangeiras habitam o bairro da Liberdade, um lugar de passado sombrio.

Sempre verei cores no meu cinza, de Anabela Roque

No Brasil, a continuidade da universidade pública estadual está em risco. Desde 2015, a UERJ vive uma situação de precarização que só tem se agudizado. Estudantes, professores e funcionários que se recusam a aceitar a situação se organizam para resistir e reivindicar. Entre os protagonistas dessa luta está a estudante de arte Matheusa Passareli, ativista LGBTQ, brutalmente assassinada em abril de 2018, no Rio de Janeiro.