“Na Ventania”

Filme é espécie de diário de um exílio 

Longa mistura linguagens para narrar episódio do “holocausto soviético

Por Daniel Oliveira
Publicado em 23 de junho de 2016 | 03:00
 
 
normal

“Na Ventania”, que estreia hoje, começa com a lembrança de uma família tomando café numa manhã de verão. São imagens que parecem um comercial de margarina, de uma beleza idílica próxima do artificial, que lembram o refrão cantado por Adele, “parecia um filme, parecia uma música, quando éramos jovens”.

O curioso é que o inusitado diálogo da produção estoniana com a canção da diva inglesa não para aí. Alguns versos antes, ela pede “deixe-me fotografar você sob essa luz, caso esta seja a última vez, para me lembrar de como éramos antes de tudo dar errado”. É um desejo de capturar a beleza, a emoção, a dor de um momento único e efêmero que contém em si toda a essência de uma história, mais até do que sua própria narrativa. E esse é exatamente o princípio ativo da estreia em longa-metragem do diretor Martti Helde.

Porque, depois do café da manhã, ele vai contar como esse paraíso foi destruído. E vai fazer isso de uma forma muito peculiar. “Na Ventania” é baseado nas cartas escritas por Erna Tamm (Laura Peterson) – um dos 40 mil estonianos deportados por Stalin para campos de trabalho forçado na Sibéria em 1941 – ao marido Heldur (Tarmo Song), do qual foi separada. Nas correspondências, ela descreve o horror e a miséria de seu dia a dia no exílio como em um diário, como se processá-lo em palavras tão doloridas quanto pessoais e poéticas a permitisse encontrar naquilo tudo algum sentido, alguma esperança. Ou, simplesmente, não enlouquecer.

E em vez de reencenar essa narrativa como em tantos outros longas sobre a Segunda Guerra, Helde faz sua câmera caminhar por essas memórias como se fossem dioramas. Ele recria momentos-chave descritos por Erna com atores e cenários estáticos e passeia por eles enquanto Peterson lê em off as cartas da estoniana.

É uma mistura de ficção, documentário e artes visuais que deixa a prosa da história em segundo plano e coloca no primeiro sua mais pura essência, as emoções evocadas pelo texto de Erna. Nessas polaroides tridimensionais em preto e branco, o diretor busca encontrar em um olhar, num posicionamento de luz ou no gesto de um ator a dor descrita pela personagem, como quem observa um quadro ou uma fotografia. E, se isso pode soar como uma apresentação de PowerPoint metida a arte, Helde usa elementos da mais pura linguagem cinematográfica em sua realização, como o fade para o branco que indica a morte de uma personagem, ou o uso da edição de som para trazer à vida o universo narrado pela protagonista.

Além de servir como espécie de simulação audiovisual do processo mnemônico – em que uma memória atropela a outra, não por ordem cronológica ou causal, mas por pura associação imagética ou emocional – a proposta, ainda que vá se tornando um pouco cansativa com o passar do filme, é uma metáfora do que aconteceu com Erna. Longe do marido, de seu país, sua casa, é como se sua vida tivesse sido suspensa, congelada no tempo em um pesadelo surreal, só podendo voltar ao “normal” quando ele terminar.

Mesmo quando essa interrupção acaba, porém, é impossível voltar ao que era antes. Se o passado era “um filme, uma canção”, não se pode revivê-lo – no máximo, reassisti-lo. É para isso que servem as memórias, para tentar revisitar um sentimento. E o interessante de “Na Ventania” é que, sem saber, na maior parte do tempo, se Heldur recebe ou não as cartas de Erna, a sensação é de que ela fala para nós, e nos convida a dividir com ela essas suas emoções mais profundas e pessoais.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!