Música

Homenagem em tom afetivo a Fernando Brant reacende questões políticas

Álbum 'Vendedor de Sonhos' tem a participação de Milton Nascimento, Mônica Salmaso, Joyce, Djavan, entre outros

Por Raphael Vidigal
Publicado em 08 de janeiro de 2020 | 03:00
 
 
 
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O avançar das horas seguia na velocidade das doses de cachaça e cerveja ingeridas. Era uma tarde regada a álcool e papo entre amigos, com cheiro de nostalgia. De repente, Zé Renato, 63, foi tomado por uma lembrança inconveniente, que colocou todos de orelha em pé, prontos para recobrarem a sobriedade perdida após tanto tempo e tantas bebidas. 

Havia uma apresentação que o vocalista do Boca Livre deveria fazer naquela noite, na região da Pampulha. “Cheguei bem ‘calibrado’, mas consegui fazer o show. Foi um show, digamos assim, mais animado”, diverte-se Zé Renato. Estas são lembranças da única vez em que o intérprete esteve na casa de Fernando Brant, em Belo Horizonte, ao lado de Tavinho Moura. 

Morto em 2015, aos 68 anos, após complicações decorrentes de uma cirurgia de transplante de fígado, Fernando é o homenageado de “Vendedor de Sonhos”, álbum com produção de seu sobrinho e músico Robertinho Brant, que começou a ser arquitetado quando o compositor ainda era vivo. 

Foi o próprio Fernando, aliás, quem sugeriu que Joyce Moreno, 71, cantasse “Saudade dos Aviões da Panair”, uma das 20 faixas do disco. Além de exaltar a melodia “em compasso quebrado, em 5/4, que você não sente a estranheza, depois vira 3/4 e tudo continua parecendo fácil, intuitivo”, de Milton Nascimento, Joyce chama a atenção para a letra de Fernando, que, segundo ela, “faz da Panair (companhia aérea extinta em 1965 pela ditadura militar) um símbolo de um tempo e de um país que se perderam”, lamenta Joyce. 

Luta

Mônica Salmaso percebeu esse mesmo teor político em “O que Foi Feito Devera”, que ela gravou pela primeira vez. “Fiquei assustada ao sentir o quanto essa música se tornou atual de novo. Não podemos perder de vista que ela fala sobre desesperança e que precisamos lutar, com todas as nossas forças, contra isso”, aponta Mônica. 

A canção recebeu a voz de Elis Regina (1945-1982) em 1978, no histórico LP “Clube da Esquina 2”. Mônica guarda na memória o registro “muito forte” de Elis para versos do calibre de “o que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou/ o que foi feito da vida, o que foi feito do amor”. Apesar disso, Mônica não considera que tenha sido um desafio cantá-la depois de Elis. “Não tenho isso, acho que não devemos brigar com a referência. Adorei cantar ouvindo dentro de mim a Elis, faz até um carinho na gente”, confidencia. 

Afeto

Foi só após a morte de Elis que Milton começou a declarar publicamente em entrevistas o amor que nutria pela intérprete. Esse sentimento reprimido foi poetizado na música “Amor Amigo”, parceria de Milton e Fernando, lançada no álbum “Caçador de Mim”, em 1981, um ano antes da partida prematura de Elis, aos 36 anos. 

Ficou a cargo da belo-horizontina Paula Santoro, 53, regravar a pérola, uma das menos conhecidas do repertório selecionado. “Essa música fala sobre o amor real, entre homem e mulher, que o Milton sentia pela Elis, mas que, devido à timidez dele e pelo fato de serem amigos, ele nunca teve coragem de revelar. O Milton é apaixonado pela Elis de tal forma que não compõe pensando na própria voz, mas na voz da Elis”, observa Paula. 

Na visão da cantora, a letra de Fernando se vale da metáfora do mar para retratar “os mistérios do feminino e da mulher que ele (Milton) nunca teve”. Por fim, ela acrescenta que “são comoventes” os versos “mas o que eu vou dizer/ você nunca ouviu de mim/ pois minha solidão/ foi não falar, mostrar vivendo”.

Doçura

Pai de uma jovem de 19 anos, Tadeu Franco, 62, não consegue não pensar em Fernando quando se põe a esperar a chegada da filha em casa. “O Fernando fazia a mesma coisa e pedia para eu ficar com ele quando esperava as filhas chegarem da rua. Hoje, faço a mesma coisa com os meus amigos. Afinal de contas, a idade chega para todos”, brinca. Franco possui uma única parceria com Fernando, mas, para compensar, ela literalmente valeu por duas. 

Gravada no disco “Em Nome do Amor” (2006), a canção “Musa”, com letra de Fernando dedicada a Belo Horizonte, recebeu duas melodias: “uma meio bossa nova tropicalista e a outra com o jeito mineiro de fazer música brasileira”, informa Tadeu. A “versão mineira” acabou sendo a registrada. “Fiz duas para ver qual o Fernando iria gostar mais, nesse dia eu estava inspirado”, orgulha-se Franco. 

Em “Vendedor de Sonhos”, ele canta “Beco do Mota”. Nascido em Itaobim, no Vale do Jequitinhonha, o músico admite que sentiu uma identificação imediata com o trecho “Diamantina é o Beco do Mota/ Minas é o Beco do Mota/ Brasil é o Beco do Mota”, e revela a participação de Fernando na melodia da faixa original. “Tem uma introdução que lembra um canto gregoriano, que o Fernando me contou que ele criou”, destaca.

Para Roberta Sá, 39, que dá voz a “Ponta de Areia”, Fernando “fala da alma brasileira de um jeito muito particular”. Quem conviveu com o letrista, como Paula Santoro, sublinha “a doçura e simplicidade do homem e cidadão”. Joyce vai além. “Fernando tem uma poética profundamente humanista. Precisamos dos nossos poetas, da palavra, de beleza e de sentimentos bons. O Brasil anda doente e pode se curar pela arte”, encerra Joyce. 

Álbum

“Vendedor de Sonhos” foi produzido por Robertinho Brant e traz músicas como “San Vicente”, “Credo”, “O Medo de Amar É o Medo de Ser Livre”, “Milagre dos Peixes”, “Sentinela”, “Outubro”, “Travessia”, “Durango Kid”, “Vida”, entre outras. 

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