Uma luva metálica de unhas pontiagudas usada por Ney Matogrosso na época do grupo Secos & Molhados é apresentada no documentário “Bixa Travesty” como um amuleto dado pela amiga e parceira Jup do Bairro para Linn da Quebrada, 29. A revelação do encontro entre ídolo e fã, no entanto, só acontece ao final do longa-metragem. “Ser recebida pelo Ney com tanto carinho e generosidade representa muito. A importância se dá, justamente, por ser um encontro de gerações, entre o que eu venho propondo na música agora e o que o Ney continua realizando com o seu corpo, sua força e sua coragem”, exalta Linn.
Focado na trajetória de Linn, que também participou da roteirização, “Bixa Travesty” estreia em BH, no Cine Belas Artes, no dia 28 de novembro. Mas o caminho, até aqui, não foi fácil. Lançado no Festival de Berlim no ano passado, ele recebeu o prêmio Teddy de melhor documentário. No Festival de Brasília, foi novamente premiado, dessa vez na categoria melhor filme de público, concedido pela Petrobras para fomentar a distribuição. No entanto, com a eleição de Jair Bolsonaro e a troca de governo, a premiação foi suspensa, como conta Kiko Goifman, que dirigiu o filme ao lado de Claudia Priscilla.
“As negociações seguem agora juridicamente. Diante disso, começamos a tentar outros apoios para o lançamento. Isso demorou, e o filme entrou em outros países, como Argentina, França e Reino Unido, antes de chegar aqui. Agora, finalmente, estaremos em cartaz e esperamos que esse documentário seja um instrumento político e simbólico para a garantia da liberdade de expressão nesse país”, relata Goifman.
Linn concorda que lançar sua cinebiografia durante o governo Bolsonaro tem um sentido ainda mais político e social. “Significa que somos complexas demais, e os homens másculos com H maiúsculo, que por tantos séculos protegeram os seus territórios como meninos mimados, estão amedrontados porque estamos conseguindo avançar nas nossas conquistas, ao inscrever e transcrever os nossos corpos nos livros de história e em todos os meios de comunicação. Eles querem nos fazer recuar, mas é impossível fingir que não existimos e que somos irrelevantes. Somos provocadoras sociais”, arremata.
Tela
Linn está coberta de razão quando afirma, sem meias palavras – uma de suas características mais marcantes, presente nas músicas de letras explícitas e diretas que jogam com trocadilhos –, que ela tem ocupado diversas mídias. Atualmente, a cantora, compositora e atriz pode ser vista na série “Segunda Chamada”, da rede Globo, na qual interpreta Natasha, aluna trans de uma escola de ensino noturno para jovens e adultos na periferia de São Paulo.
“Estou fazendo uma disputa territorial por narrativa e linguagem. O meu grande intuito profissional é elaborar um novo imaginário social, para que a gente imagine a travestilidade de uma forma positiva e possa alargar as experiências e as perspectivas. E isso, num canal aberto com tamanho alcance, é muito significativo”, avalia. No cinema, Linn participou de “Corpo Elétrico”, “Sequestro Relâmpago” e “Vale Night”. Sem parar de produzir, ela acaba de colocar nas plataformas digitais “Oração”.
O single é um aperitivo do próximo álbum, previsto para o primeiro semestre de 2020. Sucessor de “Pajubá” (2017), que abalou as estruturas do mercado fonográfico com petardos do calibre de “Enviadescer” e “Submissa do 7° Dia”, o novo trabalho foi batizado de “Trava Línguas” e vai seguir abordando aquele que Linn considera o principal tabu da sociedade brasileira. “Não encaramos o corpo com crueldade suficiente para entender suas potências, fragilidades, singularidades e pluralidades, por isso ele foi uniformizado e massificado para representar apenas homens e mulheres, de forma binária, anulando as complexidades”, declara.
Em 2014, Linn foi diagnosticada com câncer no testículo. Após seis meses de quimioterapia, ela se curou em 2017. O episódio é retratado com sensibilidade em “Bixa Travesty”. “Sou uma artista do corpo, ele é o filtro por onde passam as experiências que me atravessam. O que me leva a compor é a minha decomposição. Uso minha história para transformar a experiência através das palavras. Não tenho nenhum compromisso com o realismo. Sou completamente desleal e infiel com a realidade. O que pretendo com o meu trabalho não é produzir uma ficção, mas uma fricção da realidade”, aponta a intérprete.
Criada como testemunha de Jeová, Linn reúne no videoclipe de “Oração” companheiras de luta como Liniker e Danna Lisboa. “Creio no sagrado e na religiosidade que inclui as vidas de todas nós, travestis, que foram compulsoriamente negadas”, diz ela, que aponta a raiva como forma de união de seus pares. “Criação e destruição caminham juntas. Acredito na raiva como impulsionadora de novos pilares”, conclui.