Nos últimos anos, polêmicas ligadas a livros infantojuvenis sugeridos como leituras nas escolas públicas e particulares do Brasil têm se intensificado. Um olhar apressado talvez conclua se tratar de mera coincidência, mas aparentemente existe uma onda conservadora que mira a formação de crianças e jovens nas escolas. É o que pensa a pesquisadora de literatura infantojuvenil Fabíola Farias, que associa a “patrulha” ao movimento Escola Sem Partido.

“O conservadorismo não é novo, ele assume uma força grande agora. Temos um desvelamento de uma direita forte vigilante a qualquer atitude mais progressista, qualquer expressão que tenha como desejo o evidenciamento do mundo em sua complexidade. O Escola Sem Partido coloca a escola na berlinda”, pontua.

Fabíola destaca que a neutralidade pretendida pelos defensores de uma escola sem ideologia é intangível. “Os grandes livros para crianças e jovens, de maneira mais escancarada ou mais velada, vão sempre dizer de uma visão de mundo. O Escola Sem Partido tenta calar seus próprios fantasmas. Os crianças lidam com a morte no seu dia a dia. Por que não podemos falar da morte, da sexualidade?”, indaga a pesquisadora.

Ela também se mostra preocupada com a censura criativa em relação aos conteúdos e às formas de se abordarem temáticas delicadas. “Se esse movimento crescer muito, do que falaremos? É um momento delicado que é validado por uma opinião pública que opina sem ter conhecimento das variáveis ligadas ao que acontece em uma biblioteca. A literatura atenta para o que não está na superfície e deve fazer um convite para ver a coisa por outro ângulo. A literatura tem que tratar do que é humano, das nossas angústias, medos, do que compartilhamos enquanto sociedade. A língua vai além da sua função informativa, ela pode muito mais, pode brincar, pode ser literatura”, diz.

Patrulha

Autor de mais de 70 títulos para crianças e adolescentes, o mineiro Leo Cunha foi alvo recentemente da patrulha ao ser convidado para participar de um encontro em Atibaia, no interior de São Paulo.

“Alguém lá fez uma postagem falando que a prefeitura da cidade estava comprando livros indecentes para crianças. A verdade é quem tem palavrões no livro, mas são orgânicos, dentro de um contexto bem delineado, não são feitos para causar polêmica ou espanto”, relata o escritor.

O livro posto em xeque foi “Pela Estrada Afora”, de 1991, que tem uma carreira de sucesso com prêmios, mais de 100 mil exemplares vendidos, em mais de 20 edições. A história é centrada na relação de neto e avó, que está morrendo. Ambos se aproximam porque gostam de jogos de palavras, mas por outro lado, a avó reclama que o neto fala palavrões.

“É um dos temas da história. Seria o mesmo que fazer um livro de guerra e não ter mortes”, pontua Cunha. “Todos esses livros foram lançados há muito tempo e já têm uma carreira consolidada. Somente agora tem esse revisionismo, de uma leitura superficial e rasa. (Eles) pensam que a literatura é uma aula de bons modos, com personagens exemplares. A boa literatura precisa de conflitos, de poder falar tranquilamente de temas tristes, de perdas, de morte, de traição, qualquer assunto pode ser tocado pela arte. De alguma maneira, querem censurar o que o artista pode ou não falar”, afirma Cunha. 

Procurado pela reportagem, o movimento Escola Sem Partido não havia retornado as ligações até o fechamento desta edição.

 

“Negar é apagar a memória”

Para Ana Elisa Ribeiro, escritora e professora de redação do Cefet-MG, para além do conservadorismo, existe uma falta de repertório para lidar com a literatura e sua capacidade simbólica. “O problema mais amplo é a distância que as pessoas têm da literatura. A pessoa não consegue fazer um pacto de ficção com nada. Ele lê aquilo como se fosse algo verídico. Existe um medo histórico da palavra e do livro. Nós, somos criados para ter medo da literatura, é preciso ter coragem para enunciar a palavra”, destaca a autora.

Para além da falta de leitura, Ana Elisa aponta o risco de um revisionismo histórico que também é sentido na publicação de livros. “As pessoas querem editar as palavras. O MEC não quer adotar livros que tenham o termo ‘ditadura’ e usem ‘regime militar’. Esse tipo de perseguição da palavra serve para apagar nossa história. Negar é um jeito de apagar a memória. A gente corre o risco de ter uma nova geração de brasileiros que não saberão nada da ditadura militar porque não viveram o período e porque os livros não contam essa história”, pondera Ana Elisa.

Livros na berlinda

“Meninos sem Pátria”, de Luiz Puntel foi questionado no Colégio Santo Agostinho (RJ) por fazer “ideologia comunista”. O livro narra as idas e vindas de uma família de exilados brasileiros durante a ditadura militar.

“O menino que espiava de dentro”, de Ana Maria Machado. O mundo imaginário do personagem central foi encarado como uma “apologia do suicídio”. A polêmica surgiu de um post anônimo em redes sociais.

“Enquanto o Sono não vem”, de José Mauro Brant. Inspirado em tradições populares, um dos contos do livro, “A Triste História de Eredegalda” foi tido como incestuoso. O livro foi recolhido em escolas do Espírito Santo.