Música

Lô Borges: “2019 não tem nada de esperançoso”

Cantor estreia 10 parcerias com Nelson Ângelo em novo disco

Por Raphael Vidigal
Publicado em 23 de abril de 2019 | 03:00
 
 
 
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Alguns músicos não acreditavam, uns riam e outros ficavam sem saber o que fazer. Sem contar aqueles que simplesmente se recusavam a tocar. A indicação “quelque chose” em determinado momento da partitura, traduzida literalmente do francês para o português como “qualquer coisa”, deixou em maus lençóis a orquestra do conservatório da escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), convocada para participar do I Festival Estudantil da Música Popular Brasileira. O ano era 1967. 

“Falei com eles: ‘Afina o instrumento, dá uma pancada na borda do prato de bateria, faz um barulho’. A ideia era essa, gerar um efeito. Poderia ter escrito isso de maneira mais inteligível, mas a gente era tudo garoto na época”, recorda Nelson Ângelo, 69, responsável pelo arranjo inusitado para “Equatorial”, inscrita pelos autores Lô Borges, 67, Beto Guedes e Márcio Borges na competição universitária. 

Essa é a mais antiga lembrança da dupla sobre um primeiro encontro. “A gente pode até ter se visto antes, mas não foi tão marcante quanto dessa vez, em que os músicos da conservadora orquestra carioca se rebelaram contra o arranjo do Nelson Ângelo. Foi um fiasco”, diverte-se Lô. Passado meio século, os dois se reencontraram de maneira única.

Com “Rio da Lua”, primeiro disco de inéditas de Lô em oito anos, ele e Ângelo tornaram-se parceiros de letra e música. “Descobri uma facilidade para a escrita que eu nunca tinha percebido. Meu negócio sempre foi a música, desde menino. Eu guardava as melodias na cabeça, mas não guardava as letras”, admite Ângelo, cuja modéstia parece ignorar a inspirada letra para o choro “Um a Zero”, de Pixinguinha e Benedito Lacerda, criada por ele em 1994.

Importante violonista e guitarrista do Clube da Esquina, o autor de “Fazenda” também participou de álbuns referenciais de Milton Nascimento, Elis Regina, Chico Buarque, Nana Caymmi e Gonzaguinha, entre outros. Já a nova aventura começou em uma apresentação de Lô em 2017, no Circo Voador (RJ), durante a turnê do famoso “Disco do Tênis”, intitulado apenas “Lô Borges” em 1972, quando foi lançado, e que nunca tinha ganhado show. Por sinal, Ângelo também tocava guitarra nesse trabalho. 

“Tinha muito tempo que o Nelson (Ângelo) não via o Bituca, o Ronaldo Bastos e eu. Eles assistiram a esse espetáculo da coxia, e o Nelson ficou muito comovido”, informa Lô. A comoção tomou forma de texto quando o compositor chegou em casa. “Lá pelas quatro da madrugada, os versos me invadiram”, comenta Ângelo. “É tempo de lembrar das coisas que foram ditas/ Na trilha sonora da nossa estrada sem fim/ Eis que a viagem começa de novo/ Quando a lembrança vem nos falar/ Dos sacramentos guardados/ O mar da montanha é monte de nuvens”, foram as palavras enviadas para Lô via mensagem de texto.

“Eu não escrevi em forma de letra, apenas quis dividir com o Lô o meu entusiasmo, porque era pertinente naquele momento. Nunca tinha pensado em compor com ele porque nós dois sempre fomos mais de melodia”, conta Ângelo. A surpresa se transformou em alegria quando o autor dos versos os recebeu cantados por Lô. Batizada de “Partimos”, a música foi a primeira das dez parcerias que compõem o CD. A versão original foi registrada pelo próprio Ângelo, no estúdio Usina, em BH, e colocada nas redes. 

“Foi um processo rápido. Eu tinha o costume de mandar as melodias para os parceiros colocarem letra, raramente fazia o contrário. Mas dessa vez fluiu assim”, destaca Lô. Essa fluência é perceptível no ritmo das canções. “As músicas não são acomodadas nem rebeldes. Elas são tranquilas. Nesse pessimismo total, estamos indo na contramão. É quase uma heresia desejar as boas novas agora, quando todo mundo quer comer o fígado do presidente e 2019 não tem nada de esperançoso, mas queremos continuar acreditando”, diz Lô.

Novamente, “Partimos” sugere conter a senha do conjunto da obra: “os tempos da esperança/ são também de solidão/ (...) é hora de dizer qual foi, qual é, e perguntar que será?”. “O mundo está complicado e confuso. É uma boa época para a gente restabelecer o convívio solidário”, resume Ângelo. 

Ouça a faixa-título do álbum “Rio da Lua”: 

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