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Morte e vida feminina 

Premiado em Locarno e eleito melhor documentário no Festival do Rio, “Olmo e a Gaivota é mergulho na gravidez

Por daniel oliveira enviado especial
Publicado em 27 de outubro de 2015 | 04:00
 
 
 
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São Paulo. “Elena”, primeiro longa de Petra Costa, era a história de três mulheres encenando a mesma vida em três momentos diferentes. Seu novo filme, “Olmo e a Gaivota”, acompanha uma atriz que, presa em repouso domiciliar durante a gravidez, deve aprender a interpretar a si mesma. Depois dele, Petra está indo para Nova York atuar no filme de uma amiga argentina, em que ela vai viver uma documentarista brasileira.

É impossível ignorar que autoatuação é uma espécie de obsessão para a diretora. “Acho que eu me repeti”, ela ri. Mais que uma repetição, porém, “Olmo”, exibido no sábado na Mostra de São Paulo e com estreia prevista para 5 de novembro, é uma continuação da verdadeira fascinação da cineasta: ritos de passagem.

Se “Elena” era sobre a transição da adolescência para a vida adulta, em que Petra trocava de pele e encontrava sua voz enquanto descobria seu direito de viver diante da tragédia de sua família, o novo filme é sobre o próximo grande passo na vida de uma mulher, quando essa identidade conquistada deve morrer. “Fala-se muito pouco de como a gravidez é uma morte de quem você era antes”, ela argumenta.

O curioso é que a gravidez entrou no filme por acaso. “Olmo” começou como um longa sobre um dia ordinário na vida de uma mulher, tornado extraordinário por seus pensamentos e emoções. Mas a atriz italiana Olivia Corsini, do Théâtre du Soleil francês – que Petra conheceu por amigos em comum e que protagonizaria o longa – descobriu-se grávida às vésperas da filmagem. Mais que isso: ela tinha uma lesão no útero e precisaria ficar em repouso absoluto em casa pelos próximos nove meses.

Prestes a cancelarem o projeto, Petra e sua codiretora, a dinamarquesa Lea Glob, decidiram fazer uma limonada. Em vez de um dia, “Olmo” se transformou em nove meses na vida de Olivia e seu marido Serge, também ator, que se descobrem grávidos às vésperas de uma turnê norte-americana da peça “A Gaivota” – cujo texto espelha a situação do casal. Presa em casa, ela fica, e ele segue com o espetáculo.

“Nós sempre interpretamos papéis. Ele era Ricardo III, e eu Ana. Ele Otelo, eu Desdêmona. Ele Trigórin, eu Arkádina. Será que nós sabemos ser nós mesmos?”, sintetiza Olivia perfeitamente no filme. “Olmo” se torna, assim, a história de dois atores obrigados pela gravidez a interpretar a própria vida. E como diretora, Petra se torna a provocadora que transforma esse processo em uma “ficção construída em fatos reais”.

PSIQUE FEMININA. A cineasta transforma esse cotidiano do casal em um jogo de cena delicioso e verdadeiro, abusando do talento dos dois atores que tem nas mãos, e deixando claro essa fronteira borrada entre ficção e documentário ao dirigir os dois durante uma discussão. Acima de tudo, porém, ao retratar uma mulher presa com seus piores demônios e medos em um apartamento fechado, exorcizando-os por meio da autoencenação, “Olmo e a Gaivota” se torna, a exemplo de “Elena”, outro mergulho na complexa riqueza da psique feminina – trazida à tona pelo DNA italiano e os hormônios da gravidez da fabulosa atuação de Corsini, e pela sensibilidade incisiva do texto de Petra.

“Eu vi o ‘Otto’, do Cao Guimarães, e achei uma contemplação linda da transformação física da esposa dele na gravidez. Mas ela não tem voz, não fala. Eu queria saber o que se passa na cabeça dela”, explica a diretora. E seu filme faz exatamente isso, com Olivia compartilhando com o espectador seus temores mais pessoais: de que o filho represente o fim de sua carreira, de que ela não vai saber ser mãe, de que algo que ela faça cause a perda do bebê. “Tem um provérbio africano que diz que a gravidez é uma ponte. As pessoas podem te acompanhar até ela ou te encontrar do outro lado. Mas ninguém pode atravessar com você”, conta Petra.

Interpretar a si mesma no filme acabou sendo uma libertação dessa prisão para a própria Olivia, uma italiana intensa e apaixonante que tem a atuação como sua energia vital. “O Théâtre du Soleil tem uma caracterização muito forte, inclusive com máscaras, para que o ator desapareça; Quando viu o ‘Elena’, a Olivia me disse que tinha esse desejo de trazer a si mesma para a cena”, revela a diretora.

Essa paixão da atriz se manifesta na tela em um talento contagiante tanto na primeira metade de “Olmo” – quando o medo de perder o bebê e a ambivalência da maternidade criam uma tensão e uma intensidade psicológica – quanto na segunda, em que o risco passa e o filme se torna uma celebração da vida e de sua química hilária com o marido Serge. “A imersão foi tanta que o único momento em que ela ficou reticente quanto ao longa foi quando viu o corte quase final, depois que o filho já tinha nascido, e não se reconheceu naquela ambivalência de ser mãe. Mas falar disso é importante. Porque naturalizar a gravidez é uma opressão. Ela não é algo inerente à mulher. É uma escolha, e isso traz dilemas, e é um tabu falar desse medo”, conclui Petra.

O repórter viajou a convite da Mostra

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