Quando dois escândalos de assédio sexual vieram à tona nos Estados Unidos em 2016 e 2017, as mulheres da indústria do audiovisual – especialmente em Hollywood – se mobilizaram para dar um basta. Atrizes, diretoras e produtoras popularizaram o movimento #MeToo, criado em 2006 pela ativista Tarana Burke, vítima de violência sexual, e iniciaram uma série de reuniões para lutar por respeito e direitos mais igualitários no entretenimento.
O fenômeno nas redes sociais aconteceu após as denúncias contra o produtor Harvey Weinstein, acusado de ter assediado inúmeras atrizes. Pouco antes, o chefão da Fox News, Roger Ailes, já havia sido demitido depois das alegações de funcionárias de que o executivo as assediava em troca de ascensão profissional. O caso está no longa “O Escândalo”, de Jay Roach, que deve estrear no Brasil no fim de janeiro de 2020 e tem Nicole Kidman, Margot Robbie e Charlize Theron no elenco. Ailes perdeu seu cargo quando duas âncoras da Fox News quebraram o silêncio sobre o comportamento do presidente do canal.
No streaming, a Apple entrou no mercado com “The Morning Show”, série que traz Jennifer Aniston e Reese Witherspoon no centro de uma trama fictícia, porém realista. Na atração, criada por Jay Carson, Jen é Alex Levy, âncora de um importante noticiário da TV americana, o “The Morning Show”. Alex vive dilemas depois que seu companheiro de bancada, Mitch Kessler (Steve Carell), é acusado de abuso sexual por uma produtora do programa. Com a revelação, Kessler é demitido e Alex, por impulso, convida uma repórter desconhecida para dividir a bancada com ela, numa manobra para mostrar aos executivos da emissora que está no comando. A contratada é Bradley Jackson, papel de Reese.
Mais do que mostrar o assédio, a série acompanha as consequências dessa violência para as mulheres. E está aí a diferença para outras épocas, pois o estupro, o abuso, o assédio são mostrados no audiovisual com frequência, mas a mulher raramente sai da posição de vítima sem que se mostre os estragos que uma atitude, muitas vezes considerada normal – um elogio, um flerte, um toque mais íntimo –, pode causar. Enquanto Kessler vê seu abuso como sexo consensual, o público acompanha as consequências do ato para as mulheres com quem ele transou.
Time’s Up
“O #MeToo foi um momento que trouxe duas coisas importantes: começaram a falar de forma mais pública dessa questão que antes era falada a portas fechadas – assédio, estupro e abuso de poder, coisa que já era parte de Hollywood desde sempre –; e iniciaram uma mobilização grande dentro da indústria com reuniões entre mulheres que culminaram na criação do Time’s Up”, defende Luísa Pécora, do site Mulher no Cinema. O Time’s Up é uma série de recomendações para equiparar mulheres e homens na indústria do audiovisual e acabar com o abuso sexual, estimulando a denúncia dando suporte às (aos) acusadoras (es).
“O Escândalo” e “The Morning Show” são os primeiros produtos que chegam às telas no pós #MeToo. São importantes para mostrar esse levante e por retratar as mulheres não só como vítimas, mas buscando o empoderamento. Em “The Morning Show”, as mulheres escancaram suas dores, mas não se intimidam por muito tempo. Em uma cena, a personagem que denuncia Kessler dá uma entrevista a Bradley e explica, quase didaticamente, porque o relacionamento dela com o acusado não foi sexo consensual. A série traz ainda o olhar machista da sociedade em relação a esse comportamento que sempre inocentou os homens e condenou as mulheres – é sempre a mulher que dá mole?
Junto com essa mudança de pensamento, o #MeToo e o Time’s Up erguem outras questões como a representatividade feminina no audiovisual, seja atrás das câmeras ou à frente delas, a sororidade, o fim da masculinidade tóxica (leia mais na página 3).
No Brasil, o movimento #Mexeu com uma Mexeu com Todas também foi encampado por atrizes e causou a demissão de José Mayer da Globo após denúncia de assédio sexual pela figurinista Susllen Tonani.
#Mexeu com uma, mexeu com todas
Na maioria das vezes, quando o abuso sexual aparecia nas telas, a mulher era a vítima e ponto. Agora, as produções têm o cuidado de mostrar o crime sem parar a história aí. Hoje, a mulher que sofre a violência não está só. E aí, a tal sororidade chega para provar que não precisar ser apenas palavra da moda.
“Hoje, denunciar não é mais o suficiente”, diz a cineasta baiana Hilda Lopes Pontes, que assina o curta “11 Minutos”. “Estamos cansadas de ver corpos marginalizados sofrendo. Precisamos de novas narrativas, que mostrem a realidade, mas que também apontem uma saída, um caminho, algo que nos traga esperança”, afirma.
Em seu filme, Hilda mostra uma mulher que sofre assédio sexual e tentativa de estupro. No entanto, ela conta com a ajuda de mulheres guerreiras para lhe dar suporte e força. “A ideia veio do meu cotidiano e do meu constante pânico de andar de táxi devido aos assédios que já vivi neles. Veio também de pensar na nossa realidade de mulher que não tem paz, que está sempre com medo”, completa a diretora.
A produtora Shonda Rhimes, criadora de séries como “Scandal” e “How to Get Away with Murder” – com protagonistas femininas fortes –, integra o movimento Time’s Up, que luta pela igualdade de gêneros no audiovisual. Sua série de maior sucesso, “Grey’s Anatomy”, trouxe no 19º episódio da 15ª temporada uma cena que emocionou os espectadores. No capítulo, uma vítima de estupro dá entrada no hospital e é cuidada pelas doutoras Jo Karev (Camilla Luddington) e Teddy Altman (Kim Raver).
A trama acompanha essa mulher desde a negação do estupro pela paciente, passando pela vergonha, pelo sentimento equivocado de culpa e pela descrença na Justiça. O episódio mostra ainda o exame que é feito para coleta de evidências e o trauma que a violência deixa.
Abby, a paciente, não quer deixar o quarto para ir à sala de cirurgia, pois não consegue olhar para um homem sem se recordar de seu agressor. Para ajudá-la, a dra. Jo Karev convoca médicas, enfermeiras e funcionárias para fazer uma corrente feminina no corredor para que Abby passe sem que tenha de encarar nenhum homem. A cena (que pode ser vista na Netflix) teve muita repercussão e, segundo pesquisa da Reuters, o capítulo fez com que a procura por informações sobre o exame de coleta de evidências em caso de estupro aumentasse nos Estados Unidos logo após a atração ir ao ar.
“O feminismo virou pauta, mas virar pauta e provocar mudança em representação há diferença”, fala Luísa Pécora, do site Mulher em Cena. “Precisamos ver se haverá continuidade nisso. O desafio talvez seja manter o tema em pauta para que não seja só um assunto da moda.”