O ambiente abafado, escuro, com cadeiras e mesas dispostas em ordem aleatória e uma condensada fumaça de inúmeros cigarros que cobria o teto como nuvens era frequentado pelos tipos mais exóticos da cidade no centro de BH. Naquela noite em especial, o teor fisionômico da fauna de espectadores contrastava com os rostinhos de bons moços dos quatro rapazes cariocas, que trataram de dispersar a má impressão quando fizeram soar o som de suas guitarras, baixo, bateria e teclado. 

Era a primeira vez que os estudantes da PUC-Rio se apresentavam fora de casa, longe da cidade natal. Àquela altura, Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Bruno Medina e Rodrigo Barba andavam em qualquer lugar como ilustres desconhecidos. Ainda não havia, como marca, a barba que Caetano Veloso usou de adereço cômico numa premiação da MTV, nem sinal dos ódios e amores que passaram a cercar a última banda do rock nacional que atingiu um sucesso popular, capaz de tornar “Anna Júlia” a música mais tocada no Carnaval da Bahia, no ano 2000. 

Palco daquela distante noite de estreia em 1998, o Butecário não existe mais. Porém, como prova de que os fins não são todos definitivos, o Los Hermanos se apresenta nesta sexta (26), em Belo Horizonte, como parte de mais uma turnê de reencontro desde que o famoso hiato por tempo indeterminado foi anunciado em 2007. Inspiradora do meme “segunda-feira é um dia tão chato que devia se chamar Los Hermanos”, viralizado em 2015, a trupe voltou a ser alvo de brincadeiras ao colocar na rede a primeira composição inédita desde o derradeiro álbum “4” (2005). 

Como junto do single “Corre Corre” vinha uma foto atualizada do quarteto, até os fãs começaram a compartilhar uma montagem que comparava essa imagem com as de 1999, há 20 anos, quando eles surgiram: “Quando você encontra a turma da faculdade e vê que todo mundo envelheceu mal”, dizia a legenda do novo meme. “A internet, de maneira geral, virou a porta de banheiro da rodoviária, ou seja, uma tela em branco para tecer comentários aleatórios sem consequências muito palpáveis”, opina o tecladista Bruno Medina, 40.

A despeito das controvérsias, ele se escora em números para defender a relevância do conjunto. “Nenhuma banda chega aos 22 anos fazendo turnês do porte das que fazemos dando refresh (ferramenta de pesquisa) no Twitter para ler comentário dos haters (em tradução literal ‘os que odeiam’)”, diz. “Diferente de um cargo público eletivo, uma banda não precisa refletir os anseios da população, apenas daqueles que se identificam com o que fazemos. Nossos shows são pensados para agradar aos fãs”, completa. 

Apesar dos pesares, o músico percebe que os embates no universo virtual têm tomado cada vez mais conta da vida brasileira, e não apenas no âmbito musical. “Vivemos um momento de profunda polarização de valores. Ainda sinto os reflexos do acirramento dos ânimos que ocorreu durante as eleições e que desencadeou uma onda de violência que pode até se dar majoritariamente na internet, mas que tem consequências nefastas na vida de algumas pessoas”, observa. 

Embora limitada, ele acredita que a banda possa dar sua contribuição. “Nossas músicas têm como tema o amor, em suas diversas formas possíveis. Num momento como este, qualquer iniciativa que enalteça a aceitação das diferenças ou a si próprio, o amor livre e ao próximo, e que quebre o discurso da segregação é válida”, afiança.

Repertório. No roteiro do show estão as indispensáveis “A Outra”, “Sentimental”, “A Flor”, “Retrato Pra Iaiá”, “O Vento”, “Todo Carnaval Tem Seu Fim” e, inclusive, “Anna Júlia”. “Os fãs do Los Hermanos se tornaram protagonistas do espetáculo. Muita gente vai para testemunhar esse fenômeno e fazer parte dele”, enaltece Medina, que enxerga perenidade na obra que ajudou a construir. “Às vezes ouvimos músicas que imediatamente sabemos quando foram compostas, quais foram as referências, porque vemos ali reflexos de clichês harmônicos ou instrumentais que se tonaram comuns num determinado período, o que costuma se chamar de ‘música datada’. Existe uma sonoridade típica da nossa banda, mas não necessariamente associada aos anos 2000”, destaca.

Essa característica clássica e atemporal das canções conta com um episódio épico a seu favor, quando a Orquestra Petrobras Sinfônica gravou o projeto com versões para músicas do grupo, em 2017. “Quando assisti ao concerto fui tomado por uma sensação engraçada, porque muitas daquelas soluções harmônicas foram concebidas num sítio, onde fazíamos a pré-produção dos discos, com todo mundo de bermuda, sem camisa, à beira da piscina, definindo suas partes de maneira muito informal, às vezes para fechar a música ainda antes do almoço. Daí quando você ouve aquelas mesmas melodias sendo executadas por uma orquestra, tudo ganhou uma aura solene”, admite Medina.

Single. Infelizmente para os mais fanáticos, o “gostinho de quero mais” despertado com “Corre Corre” deve ficar nisso. “Moramos em três países distintos (Brasil, Portugal e Estados Unidos). Pelos projetos particulares de cada um e a dificuldade de alinhar as agendas, não vejo, por hora, contexto para o surgimento de novas músicas”, informa o tecladista, suspendendo as esperanças de um novo álbum. Composta por Camelo numa “ocasião em que não havia planos de lançar material inédito”, a música ficou engavetada porque o autor a achava “a cara do Los Hermanos”.

“Quando vieram os ensaios da nova turnê, ele tocou para a gente e todo mundo curtiu. Aproveitamos o tempo que sobrava para ir tocando, aparando as arestas, até chegar na versão que foi registrada em estúdio”, conta Medina. “Acredito que essa música surgiu quase que por acaso, pelo fato de estarmos todos juntos”, completa. A mesma casualidade é usada para explicar o retorno de tempos em tempos. “Existe uma mística em torno disso, mas a verdade é bem simples. Nós somos amigos, sentimos saudades do convívio, gostamos das músicas que fizemos e tem muita gente ainda afim de nos ver tocar, precisa algo mais?”, questiona.

Outra verdade é que o cenário em que eles retornam não é o mesmo de quando deram a partida na carreira, no final dos anos 90. “O rock tinha um lugar de maior protagonismo na música brasileira e isso nos foi favorável. O advento do digital fragmentou e popularizou muito o acesso à música, o que é positivo. Na nossa época não se chegava ao grande público sem a anuência dos caciques que controlavam a indústria do entretenimento”, afirma. Em 2012, no auge do hit “Ai Se Eu Te Pego” na voz de Michel Teló, Medina publicou uma carta aberta na internet debatendo a exposição excessiva da canção, o que motivou o músico Rafael Nelvam a criar um vídeo unindo o sucesso do sertanejo a “Anna Júlia”.

“As raízes ancestrais do pagode, do funk, do sertanejo universitário já estão por aí faz tempo, só não chegavam aos principais meios de comunicação. Hoje, a música ou o artista se tornam relevantes nos meios digitais e tocar nas rádios ou na TV torna-se a consequência e não a causa do sucesso. Acho, inclusive, que fomos agentes dessa transformação, uma vez que, à exceção de ‘Anna Júlia’ e ‘Primavera’, nossas músicas não tocaram muito nas rádios. Tivemos que desenvolver um relacionamento com nosso público através da internet e isso ajudou a fidelizar essa audiência que segue a gente até hoje”, sustenta. Os ingressos praticamente esgotados para o show em BH comprovam a tese do entrevistado e o triunfo de mais um retorno.

Ouça a primeira inédita do Los Hermanos em 13 anos: