Em época de cinebiografias ficcionadas, assistir a um documentário construído à base de memórias afetivas e preciosas imagens de arquivos é uma grata surpresa. Ainda mais quando o biografado é um homem cujo personagem se tornou mais conhecido do que o próprio intérprete. “Mussum: Um Filme do Cacildis”, de Susanna Lira, é um deleite, principalmente para quem viveu a infância ou a adolescência nos anos 80 e guarda com carinho a lembrança desse trapalhão.
“Há pouco espaço para homens como Antônio Carlos mas muito espaço para o Mussum: um estereótipo”, fala Susanna. “Quis trazer esse lado do homem preocupado com a educação dos filhos, com a vida profissional; um homem que alfabetizou sua mãe. Ele era muito sério, muito comprometido e muito íntegro com as coisas dele”, afirma.
Para contar a trajetória de Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994), Susanna decidiu seguir a linha de seu biografado. “Queria fazer as pessoas rirem também”, conta. Por isso mesmo, a diretora optou por construir um documentário leve, cheio de grafismos e ironias. Para entrar em alguns detalhes mais polêmicos da vida de Mussum – como o fato de ele ter cinco filhos de cinco mulheres diferentes –, ela brinca com a narrativa dos documentários à Discovery Channel, com Lázaro Ramos no papel do narrador que vê tudo do alto e explica tudo num tom professoral.
“Acho que o grafismo tem muito a ver com o Mussum, que é protagonista de muitos memes na internet. Ele está sempre atual e rindo”, fala Susanna. “Ele criou um modo de falar e tinha essa linguagem própria. Mussum era uma figura irônica, e eu quis brincar com isso”, explica.
Outro recurso para tocar temas delicados como o consumo de álcool – ou “mé”, como diria Mussum – foi colocar este hábito da bebida na boca de pessoas próximas, como seus filhos. São eles que contam detalhes mais íntimos do pai e dão protagonismo a Antônio Carlos, minimizando a janela do Mussum em partes do documentário. Os depoimentos dos filhos trazem o lado exigente e responsável do biografado, que levava muito a sério seus compromissos profissionais e valorizava demais o estudo de suas crianças.
Tesouro audiovisual
Apesar de fazer um recorte da vida de Antônio Carlos já em sua fase adulta e levar o nome “Mussum”, o filme conta com muita riqueza de imagens os anos do tocador de reco-reco nos bailes da Mangueira e, posteriormente, no conjunto Os Originais do Samba, um dos mais importantes dos anos 60 e 70. Com o grupo, formado por ritmistas de Escolas de Samba do Rio, Antônio Carlos tocou com artistas como Elis Regina, Jorge Ben e Jair Rodrigues.
“Foram quatro anos de pesquisa arqueológicas mesmo, pois o nosso arquivo é muito precário”, lamenta a diretora. “Achamos muita coisa fora do país”, diz. Além da dificuldade por causa da má conservação do arquivo audiovisual brasileiro, constantemente afetado por incêndios ou por umidade, Susanna ainda cita como dificuldade os trâmites de liberação de arquivo de música. “Precisamos estar atentos ao nosso arquivo, pois o Brasil não cuida. Cada vez que consigo fazer um documentário com material de arquivo, sinto que salvei um pouco de história”, comenta a cineasta, também autora de “Clara Estrela”, sobre a cantora Clara Nunes.
Depois de realizar documentário também sobre Jorge Loredo (1925-2015), o Zé Bonitinho (o curta “Câmera, Close!”), Susanna agora está em fase de pesquisa e captação de recursos para realizar um documentário sobre o ex-jogador de futebol Carlos Casagrande.
Lázaro Ramos é narrador e consultor do filme
A preocupação de Susanna Lira ao realizar “Mussum: Um Filme do Cacildis” foi retratar esse humor do início da era de “Os Trapalhões”. Naquela época, as piadas dos humorísticos, não só no Brasil, mas no mundo, eram bastante centradas no sexismo, no racismo, na homofobia. “As piadas daquela época são inadmissíveis nos dias atuais”, fala Susanna.
O problema é que Mussum, esse personagem negro, malandro, sambista, cachaceiro, era o estereótipo que servia à piada. No entanto, o personagem não aceitava as brincadeiras racistas e tentava se impor numa crítica camuflada à questão. “Ele era um homem negro que sofria a piada, mas a rebatia”, analisa. Para retratar esse humor de forma cuidadosa, a cineasta contou com a consultoria do ator Lázaro Ramos, narrador do documentário. “Ele foi fundamental para essa medida”, fala.
Para ela, o humor amadureceu: “Os comediantes estão buscando graça em outras coisas.” E Mussum está além das piadas racistas. Tanto que o que sobrevive até hoje são os memes com sua linguagem peculiar e divertida. “É memis? Cacildis!”