As mãos juntas nos quadris, o tronco orbitando sobre si mesmo e a cabeça levemente inclinada para trás fazem adivinhar o transe. E Kaabo! A energia de Exu ocupa o espaço quadrado, intensamente iluminado, enquanto, na sombra, outros bailarinos esperam até serem chamados para a festa que o Grupo Corpo armou para o mais humano dos orixás.
Provocada pela banda paulistana Metá Metá, a companhia mineira foi buscar na umbanda o gesto e o sentido para “Gira”, espetáculo que estreia no dia 4 de agosto, no palco do Teatro Alfa, em São Paulo, e cumpre temporada em Belo Horizonte de 2 a 6 de setembro, no Palácio das Artes. E descobriu um novo jeito, forte e intenso, de traduzir a brasilidade através da dança.
Exu não é só o assunto da nova criação. Assim como nos rituais afro-brasileiros, é ele quem faz mover, quem define a ocupação dos espaços, quem dá intenção a cada encontro ou deslocamento.
Sem ele, tudo seria estático. Chegou como tema pelas mãos do trio Metá Metá, que, convidado a assinar a trilha original e com total liberdade para criar, sugeriu o orixá, que já inspirava o grupo desde o último álbum.
“Foi um universo totalmente novo para mim, que não tinha qualquer vivência no candomblé ou na umbanda. Então, o que fizemos foi correr atrás, ir além da literatura e buscar nos terreiros elementos não só gestuais para poder fazer uma leitura bem particular”, conta o coreógrafo Rodrigo Pederneiras, que para realizar o que ele chama de “homenagem a Exu”, recebeu orientação do próprio Senhor Tranca Ruas (na umbanda, entidade de luz que abre ou fecha os caminhos dependendo da necessidade). “Exu me deu mais segurança. É ele o bailarino mais poderoso, porque é também o mais humano, o mais próximo da gente”.
As referências que Rodrigo colecionou em suas visitas aos terreiros são reconhecidas nas mãos com as palmas viradas para fora que, dependendo da entidade, ora estão na cintura, ora nos quadris; nos braços lançados para trás da cabeça com vigor; no corpo que se dobra a partir da lombar. Estão também no ombro que revela a risada debochada de Maria Padilha, a Pomba Gira poderosa que encontrou sua melhor tradução na forma como se move a bailarina Daianne Amaral (que ilustra esta página). Movimentos que dialogam com o vocabulário que o coreógrafo desenvolveu nessas mais de três décadas de ofício e que recusam o mimetismo.
Assim é com cada elemento que forma o espetáculo. Não há, em qualquer aspecto, a literalidade. “A função da arte não é reproduzir. A gente parte desse tema inspirador para o transformá-lo em outra coisa. O que você vai ver no palco são vários elementos que te levam à umbanda e ao candomblé, mas não é nossa intenção fazer uma imitação desse universo porque ele já tem o seu lugar, que é no terreiro”, explica o diretor artístico da companhia, Paulo Pederneiras.
Mente criativa por trás da concepção cênica de “Gira”, Paulo deixou o palco nu, limitado por 21 cadeiras enfileiradas nas laterais e no fundo, onde os bailarinos que não estiverem em ação estarão sentados, cobertos por um tule preto, apontados por uma luz tênue, como se esperassem a hora da incorporação.
Mesmo o figurino não se rende ao clichê. Freusa Zechmeister ignorou o vermelho, o preto e o dourado tradicionais de Exu, e vestiu os bailarinos com saias brancas de corte primitivo e tecido cru, deixando o torso nu. Assim como nos rituais, não há distinção de gênero nos ‘aparelhos’ que recebem as entidades. “O nada muitas vezes é tudo. Não tem homem e mulher. O corpo está a serviço de algo maior. Então, o figurino foi pensado para permitir que a coreografia acontecesse”, afirma Freusa.
Em Yasmin Almeida, a coreografia acontece de forma natural, orgânica. Filha de santo, a bailarina apresentou o universo que ela conhece tão bem aos outros da companhia. Em cena, sozinha no centro do palco, ela mostra a dualidade de quem empresta o corpo para uma entidade trabalhar, indo da resistência à entrega generosa. “É um presente dançar aquilo que você acredita, o que te rege, o que te coloca pra frente. Vem fácil pro corpo”, diz Yasmin, ignorando o assombro de ver o que esse elenco é capaz.
Religiosidade
Programa duplo. Na temporada de estreia no Brasil, “Gira” dividirá a noite com “Bach”, espetáculo de 1996, que tem como ponto de partida uma criação livre de Marco Antônio Guimarães sobre a música de Johann Sebastian Bach.
Agenda
O quê: "Gira” e “Bach”, com o Grupo Corpo
Quando: De 2 a 6 de setembro, (sábado, segunda, terça e quarta, às 20h30; domingo, às 19h)
Onde: Palácio das Artes (avenida Afonso Pena, 1.537, centro; tel.: 3236-7400)
Quanto: R$ 90 (inteira) e R$ 45 (meia-entrada)