Era um projeto tão secreto que nem os envolvidos sabiam de tudo. O telefone de Rafael Mike tocou e, do outro lado da linha, o empresário do músico avisou que ele deveria ir correndo para os estúdios da gravadora Biscoito Fino, no Rio de Janeiro. Mike imediatamente entrou em contato com o seu produtor e pediu que ele levasse um celular, pois a bateria do seu aparelho estava acabando. Ainda brincou: “Vai que é o Chico Buarque que está lá?”.
Mais tarde, a ousadia da traquinagem se confirmou como uma espécie de premonição. “De repente, entra o Chico Buarque na sala falando: ‘Cadê o Mike?’”, recorda. Logo, os dois começaram a conversar sobre futebol e a lamentar o momento do Fluminense, time do coração de ambos. Além disso, gravaram o videoclipe de “As Caravanas”, faixa que batizou o mais recente disco de Chico, de 2017, e que contou com uma batida de funk feita por Mike.
“Assisti à estreia da turnê aqui no Rio, ao lado do Gregório Duvivier. O Chico estava radiante, ele me deu um abração todo suado no pós-show”, revela o cantor, em tom animado. A experiência o aproximou da neta de Chico, Clara Buarque. “Outro dia ela me mandou uma mensagem pelo WhatsApp para contar que o avô dela, que é ‘só’ o Chico Buarque, estava me elogiando, dizendo que sou muito solar. Meu coração foi na boca”, confessa.
No ar com a novela “Éramos Seis”, da rede Globo, Clara tem presença garantida no primeiro álbum solo de Mike, previsto para 2020. A novidade foi anunciada com o single “Alfazema”, cujo videoclipe, protagonizado por Mike e Jennifer Dias, retrata o amor ancestral de um casal negro. “Essa música é uma prece”, define o intérprete, que diz receber vídeos de pessoas “na praia, caminhando, querendo elevar a mente para preocupações que ultrapassam o trabalho cotidiano” enquanto escutam a canção. “O disco vem nessa vibração, de uma linha carioca, brasileira, com muita alegria, que é a minha marca”, destaca.
Ensino
A relação entre Chico Buarque e Mike começou na escola. Foi no colégio Leopoldo, em Nova Iguaçu, na periferia do Rio, onde ele foi criado, que o garoto começou a “ficar impressionado” com textos de gramática que traziam obras de Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Gilberto Gil e Chico Buarque.
“A música que estava ali era diferente das que eu ouvia no rádio. Recebi um ensino de português muito rígido, que me deu acesso a grandes compositores por meio da escrita. Eu sempre fui curioso com as palavras, sou um admirador da oratória”, completa o entrevistado, que faz questão de citar a importância da professora Marilda. “Devo muito a ela, nunca vou esquecê-la. Mas ela não acredita quando eu falo essas coisas”, diverte-se.
Herança
Luzia estava grávida de oito meses quando perdeu o seu bebê. Para tentar amainar a dor da tragédia, a mãe de Luzia sugeriu que ela adotasse uma criança. Foi assim que, com 13 dias de vida, Mike chegou à casa de dona Nilda e seu Izaque, “um casal de velhinhos” que o criou. “Eram pessoas pobres, passamos algumas dificuldades, mas, com todas essas atribulações, tive uma criação muito digna, estudei legal, recebi, do jeito deles, todo o suporte afetivo”, agradece Mike.
Prestes a completar 40 anos no próximo dia 9 dezembro, ele finalmente encontrou a sua mãe biológica, que vive em Foz do Iguaçu. Apesar do jeito reservado e de falar pouco, um dia ela aconselhou o filho: “Estou vendo que a sua vida está numa rotatividade especial, se um dia a Elza Soares atravessar o seu caminho, pergunte a ela sobre seu pai”, reproduz Mike.
A convite do ator Lázaro Ramos, o músico passou a integrar “um grupo onde se debatem questões relativas ao homem negro na sociedade contemporânea, formado por advogados, juízes, atores, cantores, policiais, todos os perfis”, explica. Na semana do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (1979-2018), em março de 2018, uma discussão no grupo o sensibilizou. “Fiquei com um sentimento muito ruim no coração, como se tivesse morrido alguém da minha família”, afirma o artista, pai de um menino de 18 anos e de uma menina de 9.
“Graças a Deus, os dois tiveram acesso a uma largada diferente da minha, mas o meu filho é preto e jovem, tem o perfil de quem mais morre nesse país”, lamenta. O impacto da morte de Marielle levou Mike a compor “Não Tá Mais de Graça”, gravada em dueto com Elza no disco “Planeta Fome”. O encontro ainda rendeu uma revelação. José Baptista Ribeiro, baterista de Elza nos anos 60, era o pai de Mike. Desde então, ela passou a chamá-lo de “Baptistinha”. “Foi uma choradeira só”, conta Mike, que cantou com Elza no Rock in Rio e vai acompanhá-la na próxima turnê.
Fundador do Dream Team do Passinho, ele enaltece a estética do grupo. “A favela tem essa liberdade, amanhece um céu azul maravilhoso e está todo mundo com roupas coloridas na rua”, orgulha-se. Os integrantes se conheceram na Batalha do Passinho, criada por Mike e oriunda do Espaço Cultural na Encolha, iniciativa desenvolvida no quintal de sua casa. Com o Dream Team, o compositor foi até Angola, na África. “Cheguei ao supermercado e fiquei chocado, porque na embalagem do xampu não tinha uma ‘loirona’, mas uma mulher negra. O racismo no Brasil é estrutural”, aponta ele, que admite sentir “orgulho quando crianças negras” se mostram identificadas com o seu “cabelo irado”, conclui.