Toda vestida de branco, Jhê, 30, subiu pela primeira vez num palco no dia de seu aniversário, como cantora do bloco Moreré, em 2014. O cenário era a avenida Brasil, em Belo Horizonte, e no repertório estavam músicas eternizadas pela cantora Clara Nunes, como “Coisa da Antiga”. “Todo mundo achou que a Clara tinha ‘baixado’ em mim”, recorda Jhê. De lá pra cá, a vida da niteroiense radicada na capital mineira nunca mais foi a mesma.

“O impressionante é que no Rio eu não participava do Carnaval, fugia para cachoeira. Fui picada por esse bichinho, e aí descambou. Para quem mexe com arte como eu, é a chance de me fantasiar, colocar minhas loucuras para fora. É um momento em que posso ser livre”, diz ela, que também é artista plástica e contadora de histórias. “O Carnaval de BH me dá esse suporte. Pelo menos nos blocos que frequento, as pessoas respeitam o corpo alheio”, completa. 

Jhê foi a primeira mulher a vencer o tradicional Concurso de Marchinhas Mestre Jonas como compositora, e, até hoje, é a única bicampeã, com “Baile do Cidadão de Bem”, em 2017, e “É Carnaval em BH”, em 2019, ambas com Helbert Trotta. “O concurso me deu a coragem de colocar na roda músicas que venho compondo ao longo dos anos”, conta Jhê, que acabou chamando atenção do estilista Ronaldo Fraga. 

“Quando coloco uma roupa do Ronaldo Fraga, estou vestida de Brasil. Quando coloco um figurino de Carnaval ou não coloco nada, não é para lacrar, é uma maneira de dizer que o meu corpo é político”, observa a intérprete. Essas conexões a levaram a dois projetos distintos. Para o segundo semestre do ano está previsto o lançamento do primeiro álbum do grupo Kriol, com composições na língua cabo-verdiana, às quais a entrevistada se dedica desde 2014. 

A outra “bomba”, como ela define, é a estreia de Jhê em um disco solo. Batizado de “Macro-Jhê”, o título do trabalho foi inspirado na palavra “macro-jê”, família linguística de origem indígena no Brasil. Ao estudar sobre a história dos tapuias, etnia indígena expulsa do litoral pelos Tupis, que dominaram todo o Planalto Central, Jhê começou a perceber semelhanças com sua trajetória. “Compus uma canção falando sobre os macro-jês e descobri que os carrego em meu nome. Além disso, eu também saí do litoral. Quero fazer um disco brasileiro, contracorrente”, informa Jhê, que revela a presença de “um fado com português lusitano”.

A forma como essas canções chegam até ela permanece um mistério. “É muito intuitivo. Assisti a um documentário sobre a Björk, que mostra que o pássaro-lira tem a capacidade de reproduzir qualquer som, e, desde pequena, eu imito vozes, personagens, sugo as coisas por osmose. Quando vi esse pássaro, falei: ‘sou eu’. E comecei a chorar”, confessa.

Luz. A protagonista do romance “Tieta do Agreste” (1977) de Jorge Amado, retorna à sua cidade natal, no sertão da Bahia, décadas depois de ter sido escorraçada pelo pai. A narrativa serviu como referência para Caetano Veloso compor “A Luz de Tieta”, música que inspirou o bloco homônimo, fundado há um ano. Julie Amaral, 35, cantora e idealizadora, explica a homenagem.

“A Tieta representa esse avanço e a emancipação da mulher que não aceita os olhares de submissão e opressão. É a autenticidade feminina e todo o seu potencial de transformação”, destaca. Além da intérprete, Glaw Nader (teclado), Larissa Horta (baixo), Amanda Barbosa (bateria), Nathália Coimbra (trombone), Fernanda Rabelo (saxofone) e a convidada Débora Costa (percussão) completam o time de musicistas.

“São todas mulheres boas de serviço, isso é o mais importante, a competência está somada ao gênero”, festeja Julie. O sucesso do bloco gerou frutos. Para 2020, estão previstos videoclipes que circularão nas redes sociais. “O Carnaval nos deu uma visibilidade única. Quando você tem uma carreira independente, é raro cantar para 30 mil pessoas”, avalia Julie.

“Essa aproximação com o público é facilitada, e é muito bonito porque, em BH, o Carnaval não ficou ‘micaretado’, ele se mantém na rua, acessível para todo mundo”, elogia. Em 2019, Julie defendeu duas marchinhas finalistas no concurso Mestre Jonas, “Solta a Jararaca” e “Não É Não”. “Sem dúvidas, o Carnaval mudou o jeito como subo ao palco e encaro a plateia hoje”, garante a artista.

Prazer. Marcelo Veronez, 38, marcava presença em vários desfiles da cidade até que resolveu criar um bloco para chamar de seu. Em 2019, a chuva até atrapalhou o primeiro cortejo do Baile do Prazer, mas, agora, com o bairro Sagrada Família como “sede”, não há intempérie climática que o impeça de brilhar.

No CD de estreia, “Narciso Deu um Grito”, Veronez cantou o “Hino da Corte Devassa” por “uma preocupação histórica”. “Acho fundamental para a nossa memória”. Na opinião dele, a principal característica “desta geração carnavalesca, surgida em 2009, é fazer o próprio Carnaval”. “A chegada do poder público é recente, depois que a festa já estava consolidada”, ressalta.