Cinema

Um Nordeste em dilatação 

Depois de ser premiado em Veneza, Toronto, Hamburgo e Adelaide, “Boi Neon finalmente chega às salas no Brasil

Por Daniel Oliveira
Publicado em 13 de janeiro de 2016 | 04:00
 
 
 
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Por dois anos, o cineasta pernambucano Gabriel Mascaro (“Ventos de Agosto”) tentou frequentar as Vaquejadas. Ele queria fazer um filme sobre um Nordeste “transfigurado, em suspensão”, e o evento criado por fazendeiros para vender seu gado lhe parecia uma forma apropriada de se aproximar dessa transformação. “Recentemente, isso tomou uma escala de espetáculo. Depois do futebol, é o evento que mais movimenta a economia na região”, explica, sobre o show que reúne 150 mil pessoas em uma cidade diferente toda semana.

Toda vez que planejava ir e passar dez dias com a caravana, porém, Mascaro voltava no segundo. “É um machismo muito violento e uma afirmação de poder econômico que me afastavam”, confessa. Foi só quando conheceu um vaqueiro que dividia seu tempo entre a Vaquejada e uma confecção de moda que isso mudou. “Foi um contato que me aproximou. E o prazer de fazer cinema é se permitir entrar num universo que te afasta”, revela.

O vaqueiro se tornou o protagonista Iremar, vivido por Juliano Cazarré, e o encontro resultou no longa “Boi Neon”, que estreia nesta quinta nos cinemas brasileiros após ser premiado em festivais internacionais como Veneza e Toronto. Além desse sertanejo que sonha em ser estilista, a trupe acompanhada pelo longa inclui ainda a nada maternal Galega (Maeve Jinkings), caminhoneira que dirige o grupo; a filha dela, Cacá (Alyne Santana), que quer ser vaqueira; e o vaqueiro Zé (Carlos Pessoa).

Com seus inesperados interesses e atitudes, eles encenam o que Mascaro chama não de subversão, mas de “dilatação de uma noção de gênero”. É uma quebra de expectativa que representa esse Nordeste longe dos pré-conceitos que ainda existem quanto à região, especialmente o sertão. “Queria usar essas relações em suspensão entre eles para encenar essa transformação da paisagem do Nordeste”, descreve o cineasta.

A abordagem fica clara em uma das primeiras cenas do longa, quando Iremar atravessa um lamaçal imundo para resgatar um instrumento para sua arte: assim como ele, Mascaro vai atrás da beleza onde o olhar ordinário enxerga apenas lixo. E, para isso, ele contou com uma nova perspectiva sobre esse universo tão exaustivamente explorado pela cinematografia nacional. A fotografia de “Boi Neon” é assinada pelo mexicano Diego Garcia, que só veio para o Brasil um mês antes das filmagens acompanhar a preparação do elenco com Fátima Toledo e pinta na tela um sertão azul, sóbrio, bem diferente da luz estourada eternizada pelo Cinema Novo.

“Ele não tinha no seu imaginário a representação do Nordeste no cinema brasileiro. É um olhar deslocado e livre de qualquer historiografia visual”, descreve Mascaro. O pernambucano reconhece que as discussões entre os dois foram fundamentais, não só para o visual peculiar da produção, mas para sua abordagem narrativa observadora, quase documental, mais interessada em entender o tempo daqueles personagens do que em julgá-los ou encontrar uma trama tradicional ali. “Nós discutimos muito sobre como filmar o corpo, qual a distância. Porque aproximar reforçava um preconceito e estereótipos muito perigosos nesse filme, enquanto recuar ressignificava tanta coisa. O desafio foi encontrar esse distanciamento que potencializa os personagens”, explica.

Esse olhar documental pouco intrusivo, com cenas inteiras em longos planos, muitas vezes estáticos, em que pouco ou nada parece acontecer, é o que pode afastar espectadores mais dependentes de uma “história”. “Boi Neon” quer mais registrar momentos como uma fotografia – a “vivência do tempo”, nas palavras de Mascaro – do que em tecer um relato literário.

Encenar a banalidade poética do cotidiano nesses takes de vários minutos, no entanto, não foi algo simples para o elenco. Principalmente porque eles tinham que lidar com animais de verdade, entre bois e cavalos, na maioria das cenas. “O Juliano falava o tempo todo ‘tô correndo perigo de vida aqui, posso levar um coice’”, lembra Mascaro. Dois momentos foram especialmente desafiadores para o ator global. Um deles envolve uma cena em que Iremar e Zé tentam roubar o esperma de um cavalo de raça, masturbando o animal. Cazarré chegou no set, viu o cavalo e perguntou onde estava a prótese que ele manipularia. Ela não existia. “Ele não queria nem a pau (risos). Tive que fazer primeiro para mostrar que era um cavalo tranquilo, de pedigree”, diverte-se Mascaro.

Em outra sequência banal, Iremar sai do caminhão para fazer xixi. Foi um dia inteiro do ator bebendo cerveja para urinar do jeito e no momento certo. “Para mim, era muito importante porque o filme trabalha com essa experiência do ordinário. E observar essa dinâmica do prazer e da violência dentro do próprio corpo era fundamental”, justifica o diretor.

Mascaro ressalta, contudo, que apesar de o filme se apresentar dessa forma naturalista, pressupondo um olhar documental, existe muita intervenção naquele universo. O próprio boi neon, uma atração lynchiana que dá título ao longa, é uma invenção do cineasta. “São vários elementos que, ainda que em suspensão, podem fazer sentido na vida daquelas pessoas. O filme é a negociação entre criar essa abstração de um lugar possível, que devolva a eles a possibilidade de se tornarem humanos, e fazer isso se conectar de uma forma que a gente consiga acreditar nos personagens”, define, sobre esse Nordeste em transição – poesia e aridez, sexualidade e violência, liberdade e selvageria, pós-moderno e barroco.

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