Lançamento

Nara Vidal lança, pela editora Todavia, seu novo romance, "Eva"

A escritora mineira aborda, no livro, relações tóxicas por vezes mantidas no próprio núcleo familiar; assim como suas consequências

Por Patrícia Cassese
Publicado em 09 de julho de 2022 | 18:20
 
 
 
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A escritora mineira Nara Vidal revela um aspecto curioso de seu processo de criação literária. “Às vezes, por mais que eu tenha um desejo de desenvolver uma narrativa, o processo acaba tomando uma vida que se movimenta apesar dos meus planos”, diz ela, ressaltando a importância de estar sempre atenta a esses sinais. “Pode ser um sinal de cansaço, quando não consigo mais escrever sobre determinado tema, ou um sinal de medo, receio de avançar no texto e no que esse mergulho pode me oferecer. E pode ser sinal de estrutura mesmo, ou seja, uma ideia pode parecer boa para um romance, mas não se sustenta como tal”.

Foi o que aconteceu com “Eva”, livro que chegou recentemente às livrarias pela editora Todavia. Pensada inicialmente como um conto, em 2016, a obra acabou se transmutando em um romance. “Apesar de inicialmente ter achado a convivência com essa personagem (Eva) difícil, depois passei a me interessar a tal ponto que achei que teria condições inclusive de descobrir mais sobre ela. E a história foi se destrinchando, se apresentando”.

Nara acabou dando a Eva um passado, um presente e um futuro, “que talvez não seja metafórico, carregado de esperanças, mas ao contrário: um futuro relativo ao tempo mesmo, como um destino”, explica a mineira (de Araguari), formada em Letras pela UFRJ e radicada desde 2001 na Inglaterra, tendo obtido o título de mestre em Artes pela London Metropolitan University. 

Eva, a personagem central do romance, é uma mulher de cerca de 50 anos que Nara enfatiza ser “assustadoramente dependente dos outros”. “Se repararmos, é uma mulher que não tem autonomia financeira. Isso é muito importante no livro, ainda que quase ninguém levante ou destaque esse ponto”, ressalta.

Essa falta de independência, prossegue a escritora, é resultado claro e direto da criação machista que a personagem recebeu da mãe, que valorizava os homens como sujeitos provedores, em vez de promover e motivar uma vida menos frágil e porosa nesse sentido. “Ou seja, a precariedade da Eva não é só emocional e afetiva, é também material. E é essa a herança que é passada a ela pela mãe, que por sua vez recebeu da avó, e por aí em diante como norma e convenção para as relações familiares”, contextualiza.

Eva bíblica. A escolha do nome Eva para a personagem, diz Nara, se deu quase já na reta final da edição, mas ela entende que traduz bem essa referência à origem de conflitos e a naturalização da culpa e da vergonha nas mulheres. “E a Eva bíblica testemunhou de imediato, no primeiro conflito, a covardia e o medo de Adão que, em vez de dizer a verdade e proteger Eva da culpa total, prefere manipular a oportunidade se explicando como vítima que comeu o fruto proibido porque lhe foi oferecido”, explana a escritora, que, em seguida, argumenta. “E esse Deus onipresente e machista? Onde estava que não viu essa mentira?”. Assim, Nara gosta de pensar em Eva como uma personagem que abarca o feio e o bonito. “Ela não é nem vítima e nem vilã”.

Sobre a nova casa editorial, a mineira conta que vinha conversando com a Todavia desde que ganhou o prêmio Oceanos, em 2019, com “Sorte” (agora publicado pela Faria e Silva). “O André Conti, editor, trabalhou comigo nesse texto de forma muito cuidadosa e atenta”, elogia ela, que esteve no Brasil em abril para conhecer in loco a nova casa. "Conheci as pessoas que trabalham lá, o espaço é lindo, vi os livros de perto, falei com livreiros. Foi uma experiência generosa. Aliás, minha ideia é voltar ao Brasil, quem sabe ainda este ano e visitar livrarias que não consegui da outra vez, dar mais tempo a uma divulgação, rever amigos, enfim, uma desculpa pra voltar ao Brasil, ainda mais depois das eleições porque eu estou otimista!", finaliza.

Confira outros trechos da entrevista ao Magazine

O que te fez retornar à narrativa depois de tê-la deixado por uns anos no estaleiro? A partir deste retorno, em quanto tempo concluiu a obra?
Acho que, de forma quase contraditória, o que nos faz voltar a um tema é exatamente o distanciamento em relação a ele. É menos desconfortante retomar um assunto quando esse assunto já não doi tanto mais, quando já ultrapassamos o momento mais cru de sentir-lo. Em relação ao meu processo de composição do "Eva", isso também se aplica. A minha mãe esteve na minha vida por 34 anos. Quando ela morreu, um chão sob os meus pés se abriu. Eu tinha acabado de ter uma bebezinha e a minha maternidade só aumentou o meu desejo de continuar sendo filha de uma mãe que já não estava ali.

Foi desnorteador, foi duro, foi sombrio, fiquei doente. E sei que para as minhas irmãs e para o meu pai foi a mesma coisa. A mãe foi uma figura muito forte em casa. Se estava bem, era uma festa e a casa era leve, alegre como a risada linda que ela tinha. Quando não estava bem, a sombra se espalhava por toda parte. Era uma presença mesmo forte nas nossas vidas.

E, claro, em comum com a Eva, tive, até certo ponto uma relação de dependência com ela que me trouxe inseguranças enquanto crescia, ainda que esse controle da minha mãe fosse sempre bem intencionado. Então, alguns desses elementos, identificar alguns desses aspectos na relação entre mãe e filha foram decisões que eu tomei de levá-los para a narrativa. O mesmo aconteceu na última parte do livro, quando a Eva está, aos vinte e sete anos, em Londres e passa por um relacionamento tóxico e possessivo que logo vira agressão, violência e, eventualmente, transborda para um relacionamento criminoso.

Eu tive uma experiência que indentifico alguns desses aspectos e a razão de eu dizer isso é que, eu sei, muita gente acredita que essa vulnerabilidade não acontece com todas as mulheres. Mas não há um perfil de mulher que passe por isso. Se há um padrão é no abusador. Há, inegavelmente, uma prática de manipulação. Especialmente pelas palavras que tendem a querer confundir a vítima. É cansativo, aflitivo é, por vezes, desesperador, mas é preciso ao menos identificar essas práticas para, eventualmente, conseguir uma fuga. Portanto, se hoje consigo falar tanto da morte da mãe quanto da morte de um homem que está vivo e mora em outro país, é porque esgotei as possibilidades de reflexão sobre esses assuntos. Como se para nos livrarmos deles fosse antes necessária um corpo a corpo, uma briga de unhas mergulhadas na pele. É preciso uma ferida antes de se cicatrizar. Quando, enfim, me senti dona dessas palavras, voltei a esses temas com mais coragem e terminei o Eva. Acho que num total, foram uns uns 5 anos escrevendo o livro. 
 

Na sua opinião, quais os principais temas atravessam a narrativa e que reflexões ela propõe ao leitor?
Talvez o que fique mais visível a partir de cada leitura é essa reflexão de como as relações supostamente de afeto e amor são, na verdade, um fértil terreno para controle, posse, manipulação e tudo mais que for tóxico. Além disso, como somos adestrados a acreditar que uma relação abusiva ou disfuncional é natural e normal porque há boas intenções de cuidado e proteção. No caso da Eva, a mãe oferecia a ela esse cuidado e o namorado abusivo, uma espécie de proteção. Não que  eu tenha qualquer objetivo com essa narrativa, mas acho que, se servir para alguma coisa nesse sentindo, pode ajudar a ponderar e pensar com mais atenção nas teias de relações que nos cercam e que nos formam.

Em certo momento, Eva tenta quebrar este ciclo, mas encontra resistência...
Exatamente, a suposta rebeldia da Eva de tentar ser fiel aos próprios desejos, acaba perturbando a mãe e a avó, mulheres que, certamente, foram sexualmente reprimidas e usadas dentro de casa e do convívio familiar. Assim, quando a Eva propõe uma quebra nesse círculo e se prepara para sair dele, ela não encontra qualquer apoio e a dificuldade de fuga é flagrante e muito frustrante. A referência a ela ter o diabo no corpo é exatamente isso: é uma maneira da mãe, que foi controlada pela própria mãe com esses métodos de culpa e ressentimento, de tentar controlar a liberdade que Eva quer para o próprio corpo. E é interessante como a própria Eva identifica o diabo no corpo da mãe quando ela dança às sextas-feiras, saia levantada, bebendo. A alegria e a intimidade com o próprio corpo e seus desejos são escandalosos para aquelas mulheres. Por isso a mãe da Eva diz que quando ela envelhecer, o diabo vai deixá-la em paz. Isso porque ela vê a juventude e a beleza associada à juventude como os maiores convites para essa liberdade que a mãe deve ter desejado, mas a opressão e a repressão padronizadas não deixaram que fosse vivida. É um círculo de vício para o qual a mãe da Eva quer trazê-la e deixar que ela permaneça ali como aconteceu com ela própria. E quando a Eva propõe terminar esse jogo ela vai ser, inevitavelmente, punida por todos que praticam essa opressão.
 

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