Livros, de maneira geral, são resultado de um processo colaborativo. Mas se o que está em foco são os chamados “livros ilustrados”, o arquiteto e escritor Maurício Meirelles salienta que o texto se torna ainda mais “apenas o ponto de partida” de uma longa, longa estrada.
É o caso de “A Cidadela” (editora Miguilim), que ele autografa hoje, a partir das 13h, na Livraria da Rua, na Savassi. O autor o aponta como uma narrativa formada por três planos: texto, projeto gráfico e ilustração. E se Meirelles se incumbiu do texto, as ilustrações ficaram a cargo de Adams Carvalho, enquanto o projeto gráfico, do Estúdio Guayabo.
É em torno da cidadela que dá título à obra que os acontecimentos se desenrolam. Na narrativa, a fictícia fortaleza aparece em um relato encontrado por um dos personagens centrais – um historiador franco-argelino – em arquivos do Ministério da Defesa francês, no ano de 1978. A edificação se localizaria na área ocidental do deserto do Saara, onde ele e um coronel, seu comandante, ingressaram à procura de militares desaparecidos dias antes, numa missão na região. Avançar mais atrapalharia a surpresa do leitor.
“Acho que a obra pode ser lida como um livro de aventura. Ou um desvario arquitetônico. Ou, ainda, como uma especulação filosófica sobre os limites da razão, pois você tem dois personagens que entendem de engenharia de guerra e que são disciplinados, por isso operam dentro de uma lógica e de uma hierarquia militares – ou seja, um universo muito racional. Mas toda essa razão entra em choque com o espaço, com o qual não conseguem lidar. Diria que é um ensaio sobre os limites da razão. A ideia da potência da imaginação e da vertigem que subjaz a esse processo de razão”, explica.
Meirelles lembra, ainda, que a opção por um livro ilustrado coloca em evidência a ideia da obra como objeto cultural. “Para além do artefato, do suporte de palavras. Um produto que ecoa a sua época”. Mas não só. Ele entende que, se a sua história fosse contada num podcast, por exemplo, a recepção seria diferente.
“Aqui, há a materialidade, a percepção tátil”. E efeitos como algumas páginas sem palavras, que representam a angústia dos personagens. “Esse recurso só é possível nessa concepção de livro ilustrado. Veja, de maneira alguma é um fetiche (de autor), mas, sim, uma tentativa de criar esse significado”, pontua.
As ilustrações, por seu turno, “não entregam o texto” – tampouco foram criadas em função dele. “Elas criam uma outra linha narrativa, e as duas são potencializadas pelo projeto gráfico”.
Diálogo com Borges
Maurício Meirelles acrescenta que a obra busca dialogar com o conto “O Imortal”, do argentino Jorge Luis Borges – trata-se do primeiro do livro “O Aleph” (1949). “Nele, o personagem – que a gente vem a saber ao fim que é Homero –, em determinada passagem, chega a um palácio inabitado, meio monstruoso, como descreve, e diz ‘só pode ser obra dos deuses’”.
Maurício prossegue: “Então, começo a imaginar que a cidadela, na verdade, é a personagem principal e também a antagonista. Na estrutura da tragédia grega, o personagem que se opõe às peripécias, à dinâmica dos heróis. Uma força de oposição. E embora no livro ela seja descrita em muitos detalhes, na verdade, quem fornece essas especificações é o tenente. Só que a existência desse objeto só é possível na imaginação, então seria um objeto mental, uma conjectura”.
O escritor lembra que espaços inabitados (“agrestes, não previsíveis, áridos”), sempre o interessaram. “Acho que esse tipo de situação externa projeta o humano para dentro. Gosto muito desse ambiente de deserto. Me lembro do (escritor israelense) Amós Oz, que dizia gostar de acordar às cinco da manhã para passear no deserto, onde se reconectava consigo, com a vida subjetiva, esse espaço interno de onde as histórias emergem”, diz.
Anos atrás, o próprio Meirelles esteve no deserto do Saara, onde conheceu uma família nômade. “Me lembro do cumprimento de um deles: me estendeu a mão, a soltou, fechou o punho e o levou à altura do peito, batendo no coração. Seguramente, essa experiência do deserto, esse espaço infinito, teve um pouco a ver com a gênese dessa história”.