Não bastasse ter sido eleito por unanimidade pelos 34 votantes, o médico, escritor e homem do teatro Jota Dangelo tem um motivo a mais para comemorar a notícia, recebida nessa terça-feira (28), de que passou a ocupar a cadeira de número 26 da Academia Mineira de Letras (AML).
 
“De certa maneira, havia um motivo extra para a minha satisfação: a vaga era a do meu grande amigo Angelo Machado”, diz, referindo-se ao imortal que faleceu no último dia 6 de abril.
 
Naturalmente, Dangelo pontua que o ideal seria que os dois pudessem ter tido a oportunidade de estarem simultaneamente na Academia, quem sabe tomando os míticos chás. “De qualquer maneira, quando fui sondado a participar (da eleição), não podia recusar, inclusive por ter sido também a cadeira de outro grande amigo meu, o Bartolomeu Campos de Queiroz (1944-2012)”, afirma ele, que, vale dizer, está passando a quarentena em sua terra natal, São João del-Rei. 
 
Na verdade, Dangelo conta que sempre transitou entre a cidade que consta na sua certidão de nascimento e a capital mineira. “Mas, agora, veio a pandemia, e resolvi ficar por aqui. Desde o Carnaval estou na cidade”, diz ele, que está em isolamento social na boa companhia da mulher, a atriz, diretora e figurinista Mamélia Dornelles.
 
Em São João del-Rei, Dangelo comanda o Centro Cultural Feminino (localizado na rua Marechal Bittencourt, centro da cidade), que, também por conta da pandemia, está com as portas cerradas.
 
“A quarentena é realmente uma coisa complicada. Não exatamente pelo fato de ficar preso em casa, pois, na minha idade – Jota Dangelo está com 88 anos –, eu nem estaria saindo muito. Mas a gente sabendo que tem uma contraindicação, parece que piora (a sensação). E, olha, infelizmente, eu acho que isso vai demorar”, opina, desalentado.
 
Dentro da máxima de que o que não tem remédio remediado está, Jota Dangelo tem aproveitado o tempo para fazer a revisão do novo livro de seu filho (o arquiteto André Guilherme) e terminar textos dramatúrgicos que estavam inacabados já havia algum tempo. “O resto é ver televisão, em particular, documentários”.
 
Questionado sobre qual seria o seu principal interesse, Dangelo revela apreço pelos que enfocam cidades europeias, para citar um exemplo. De redes sociais, ele não se aproxima. “Meu celular só recebe e faz ligações. Não tenho Instagram, WhatsApp, nada...”, ri.
 
Um novo livro não está, por ora, em seu horizonte. Mas vale lembrar que a indicação à cadeira da AML se deu exatamente por conta dos vários títulos já lançados. Caso de “Pelas Esquinas” (2015), “Os Anos Heroicos do Teatro em Minas (1950-1990)” (2010), “Doce Gel” (1987), “O Sol Nascente na Amazônia” (1986), “O Humor do Show Medicina” (com Ângelo Machado, 1991), “Anatomia Humana, Sistêmica e Segmentar” (com Carlo Américo Fatini, 1983), “Oh!Oh!Oh! Minas Gerais” (com Jonas Bloch, 1968) e muitos outros.
 
MEDICINA
Uma rápida passada de olhos no nome das obras já fornece pistas da multiplicidade de campos em que José Geraldo Dangelo já atuou. Sua formação acadêmica, como é sabido, se deu em medicina, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tendo enveredado pela morfologia, acabou não atendendo a pacientes em consultórios ou hospitais. “Os meus já estavam todos no formol”, diverte-se. O livro de anatomia humana citado entre sua bibliografia tornou-se uma referência no meio acadêmico, e reza a lenda que ainda hoje responde por sua maior arrecadação no que tange aos direitos autorais.
 
A medicina foi sua atividade profissional por 35 anos, e foi nesse percurso que lançou, com Angelo Machado, o icônico “Show Medicina”, que prossegue até os dias atuais. 
 
Mas a paixão pelo teatro sempre caminhou paralela ao jaleco. Aliás, a chama foi acesa ainda na adolescência, quando, aluno do Colégio Santo Antônio, em São João del-Rei, tratou de integrar o grupo de teatro da instituição. “Ao chegar a Belo Horizonte, de imediato fui procurar a turma do teatro. Eu me entrosei e nunca mais deixei (a cena)”, rememora. Aliás, a opção pela morfologia acabou ajudando o exercício de sua veia artística. “Eu nunca precisei atender a telefonemas na madrugada ou varar a noite em plantões”, detalha.  
 
Bem, resumir os feitos de Jota Dangelo no território das artes cênicas é uma missão praticamente impossível. Mas vale citar alguns momentos marcantes, como a idealização do Teatro João Ceschiatti e o Teatro Universitário (o célebre TU). Fato é que nem tudo foram flores.
 
“Sem dúvida, houve momentos muito difíceis”, reconhece. “Pra começo de conversa, a nossa peça ‘Oh, Minas Gerais’ (junto a Jonas Bloch) foi a primeira absolutamente censurada pelo AI-5 (o mais duro dos atos institucionais, emitido pelo governo militar em 1968, sob o governo do presidente Artur da Costa e Silva). Essa fase foi bastante complicada”, reconhece. 
 
O PROCESSO
Presidente da AML, Rogério Faria Tavares conta que, após o período tradicional de luto pela perda de um imortal, que corresponde a 30 dias, um edital é publicado na imprensa e no site da academia. A etapa seguinte é a inscrição dos candidatos e, claro, a eleição. Em função da pandemia, não haverá posse por ora. “Mas, quando for possível, faremos”, afiança ele, acrescentando que a candidatura de Jota Dangelo era natural e inevitável. “Os dois (Jota e Angelo Machado) eram melhores amigos, criaram o Show Medicina”.
 
Sobre o novo imortal, não poupa elogios. “O que torna Jota Angelo uma pessoa assim, tão interessante, é a sua polivalência. Doutorou-se em medicina, teve uma rica vida acadêmica, foi um dos fundadores do TU, depois fundou o teatro O Grupo, quando, na capital mineira, ainda moravam nomes como Jonas Bloch e Carlos Kroeber (1934-1999). Por ter estudado nos EUA, quando voltou, montou textos até então inéditos por aqui. Não bastassem essas facetas, tem também a de gestor (esteve à frente de instituições como a Fundação Clóvis Salgado e o BDMG Cultural, além de ter sido secretário estadual de Cultura, entre outros cargos que ocupou) e um homem da cultura popular, por seu engajamento no Carnaval, por exemplo. É uma alegria imensa tê-lo aqui. E uma honra”.
 
Em tempo: enquanto está fechada ao público, em razão da pandemia do novo coronavírus, a Academia Mineira de Letras realiza a campanha #AMLEmCasa, com conteúdo diário em suas redes sociais e palestras inéditas, semanalmente, às quintas-feiras, em seu canal no YouTube.