A liberdade de Camilo Silvério da Silva se forjou na tradição e nela sobrevive. Afastado de suas origens ao ser trazido, em meados do século XIX, de Angola, na África, para ser escravizado em lavouras e em áreas de exploração mineral na região da atual Minas Gerais, ele resistiu à sociedade de então conservando seus valores e sua própria humanidade. Encontrou amor nos braços de Felismiba Rita Cândida, uma mulher liberta da escravidão após ser alforriada. Casados, tiveram seis filhos, entre os quais Artur Camilo Silvério, que, criado a partir de um olhar ancestral, fundou a comunidade quilombola de Arturos, sediada em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, e registrada, em 2014, como Patrimônio Imaterial do Estado.  

Dos netos de Camilo, filhos de Artur, Mário Brás da Luz foi o último sobrevivente. Vítima da Covid-19, o mestre e patriarca dos Arturos, saudado como elo entre passado e futuro até os seus 88 anos, morreu em 6 de maio deste ano. Cinco dias depois, a mulher dele, a matriarca Maria Auxiliadora da Luz, Dona Dodora, 84, também sucumbiu à doença, que, no dia 19, levou ainda a filha mais velha do casal, Maria Antônia Vieira, 65. 

A tragédia que enlutou os Arturos é a expressão mais dolorosa e extrema do golpe que a pandemia infligiu aos representantes de expressões culturais e religiosas entendidas como tradicionais, que – em um momento em que festividades e práticas que compõem seus modos de vida foram postas em suspenso ao mesmo tempo em que a transferência de conhecimento se tornou ameaçada pela devastação da morte – precisaram reforçar o compromisso com a preservação cultural. 

Agora, sem esconder todas as dificuldades vivenciadas no atual momento histórico, mas fortalecidas por um senso de coletividade apurado, essas comunidades demonstram que a tradição, ao contrário de algo estagnado, se faz no presente e sobrevive à medida que se permite transformar. É por isso que, nesse um ano e seis meses desde a chegada do coronavírus ao país, mesmo que tímido, mesmo que na virtualidade, o ressoar de tambores se fez ouvir. 

Interrupção 

“Tivemos seis óbitos em Arturos (pela Covid-19). Eu mesmo contraí o vírus, fiquei 15 dias internado, sete dias no CTI (Centro de Terapia Intensiva)”, comenta Jorge Antônio dos Santos, membro da comunidade quilombola e diretor social da irmandade de Nossa Senhora do Rosário. “Toda nossa organização, tudo o que realizamos, a gente conduz sobre a orientação dos mais velhos. Então, todo o saber que habita a comunidade, tudo que ela é hoje, foi transferido de geração para geração pelos dez filhos de Artur Camilo. São eles que herdaram suas tradições. E o seu Mário foi a última dessas raízes”, lamenta. 

“O que estamos vivendo aqui não é diferente do que outras comunidades têm vivido nos quatro cantos do Brasil. Estamos falando de um processo de transformação que passa pela perda. É claro que ninguém é eterno, mas a gente espera que as pessoas vivam o máximo possível para que a transmissão de conhecimento possa se concretizar. Infelizmente, a pandemia interrompeu esse processo abruptamente”, continua Dos Santos. “É diante dessa realidade que podemos dizer que o coronavírus, que atingiu a população mundial, nos afetou de forma especialmente severa”, avalia. 

“Nós, povos de comunidades tradicionais, quilombolas e que temos a responsabilidade de guardar um legado de ancestralidade e preservar toda uma bagagem de manifestação cultural, reconhecida como Patrimônio Imaterial do Estado de Minas Gerais, temos sofrido diversos reveses nesses tempos. Por causa da doença, o nosso modo de vida, infelizmente, ficou quase inviabilizado. Precisamos lidar com novas barreiras à execução de nossas manifestações. Nesse período, para respeitar os decretos em prol da preservação da saúde da população, tivemos que realizar atividades apenas simbolicamente, cumprindo somente parte de nossos ritos sagrados e religiosos”, expõe o diretor da irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Arturos. 

Herança cultural sobrevive 

As ponderações de Jorge Antônio dos Santos estão em sintonia com o relato de Roberto Júnior, integrante da Corporação Musical Nossa Senhora de Lourdes, de Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte. “As perdas que tivemos nesse período são imensuráveis”, crava o maestro, situando que os patriarcas e as matriarcas das comunidades tradicionais afro-brasileiras carregam consigo histórias e memórias e comunicam valores e saberes que não estão descritos em livros ou sistematizados de outra maneira. “Quando essas pessoas morrem ou são impedidas de transmitir essa instrução, se não há trabalho de salvaguardar o conhecimento deles, tudo se perde. E, sem esses elos com o passado, torna-se impossível que a gente consiga se projetar no futuro”, argumenta. 

Filho do rei imperador Wilson Gomes da guarda de Caboclo do Divino Espírito Santo, de Vespasiano, Valdeci Gomes também lamenta as barreiras impostas pela pandemia ao exercício da cultura do congado. “Não estamos realizando festividades, apenas levantamos a bandeira em datas sacras, mas sem que aconteçam os festejos, a missa conga e o almoço”, diz, sublinhando que a tradição do seu povo, mais do que no auge da realização desses eventos, é perpetuada nos bastidores deles, quando a convivência intergeracional se forja como meio de transmissão de saberes. 

Atento aos desafios de agora, Gomes cita que a guarda vem trabalhando na produção de um documentário. “Com as manifestações inviabilizadas, pensamos que seria importante pensar em outras formas de preservação da nossa história. Então, criamos grupos e passamos a fazer entrevistas com os mais antigos. Agora, estamos concluindo as gravações com os capitães antigos, com os reis congos antigos. Simultaneamente, temos feito um trabalho de pesquisa recuperando documentos sobre a origem do congado aqui em Vespasiano, manifestações que se iniciaram em 1942”, expõe. 

Adaptação 

Em meio a tanta tragédia, a adaptação ao novo é também celebrada por Roberto Júnior. “Nesse mais de um ano, avançamos no digital. Estamos fazendo reuniões online, dialogando com músicos de guardas de outras cidades e Estados. Nesse momento de tanta turbulência, temos nos aproximado mais uns dos outros, mesmo que a distância”, comenta.

Entretanto, é preciso dizer que só uma parte das dinâmicas puderam ser adaptadas para a virtualidade. “Tem muita coisa que, na prática, só conseguimos realizar presencialmente. Nesse caso, optamos por realizar as atividades de forma restrita, com um número reduzido de participantes, em um período mais curto e adotando todas as regras e protocolos de saúde. Se, em condições normais, ficaríamos o dia toda ou uma noite em uma cerimônia, reduzimos esse intervalo para ma hora ou menos”, explica Jorge Antônio dos Santos.

Na comunidade de Arturos, por exemplo, o número de eventos foi radicalmente reduzido. “Temos o candombe, o congado, o batuque, a Folia de Reis, a festa de João do Mato e mantemos o grupo artístico Arturos Filhos de Zambi (divindade da nação banto) que trabalha percussão, dança afro e teatro em torno da história dos negros. Mas, de todas essas manifestações, estamos realizando, e de forma reduzida, apenas o congado. Já as atividades do grupo artístico, optamos por realizar virtualmente, mas também de maneira reduzida”, situa dos Santos.

“Além disso, se antes era da nossa tradição retribuir visitas e participar de cortejos de nossos irmãos congadeiros de outros municípios, agora a confraternização com outras irmandades deixou de acontecer, pelo menos em termos de encontros físicos”, complementa. 

Minientrevista:

Rogério Lopes
Professor do Teatro Universitário e do programa de pós-graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

1. Como a pandemia tem afetado as dinâmicas de transmissão de conhecimento em comunidades tradicionai?

Para te responder, vou falar um pouco da minha pesquisa sobre as máscaras confeccionadas e usadas nas Folias de Reis. Para fazer esse estudo, eu estive convivi com esses representantes da cultura popular. No caso, com grupos de Folia de Reis de Fidalgo e Matozinhos (na região metropolitana de BH). Estive com eles por pelo menos sete anos. E essa temporalidade não é por acaso. Se você é iniciado nas atividades, descobre que, se ficar menos tempo, sua vida anda para trás. Mas, mais do que isso, essa é uma indicação que tem a ver com essa compreensão mais dilatada da temporalidade, do tempo preciso para que o conhecimento seja transmitido.

Essa passagem de conhecimento é demorada e não acontece de maneira sistematizada. Você não faz um curso sobre a Folia de Reis, não é assim. Os saberes são repassados por meio de fundamentos. E não é algo que é transmitido no momento do auge da festividade, mas no momento da preparação, da costura das fardas, na confecção das máscaras... São nesses momentos de convívio que esses saberes vão sendo repassados. Portanto, a dificuldade de realizar os encontros configura um golpe e, mais extremo, a perda dos mestres é algo ainda mais severo e representa um corte nesse elo.

Então, como em outros campos, a pandemia explicitou ainda mais algumas deficiências em relação à forma como o poder público e a sociedade lidam com essas comunidades, que carecem de políticas públicas mais efetivas e eficientes para dar conta de outras formas de existir e de se organizar.

2. Percebe movimentos de resistência e sobrevivência dessas tradições?

Em primeiro lugar, é preciso ter a lucidez em reconhecer que as tradições se renovam, que elas não estão localizadas no passado e que podem interagir com as novas tecnologias. Portanto, nada impede que esse conhecimento migre, de alguma maneira, para o virtual. A questão, me parece, está na forma como esse conhecimento é repassado. Se não é pela escrita, tem a dimensão da contação, mas há também o elemento da presença, da relação que se estabelece entre a pessoa com o outro e com o meio ambiente. É difícil que essa dimensão da experiência do corpo, que traz consigo uma série de coisas da ordem do indizível, alcance uma equivalência pela virtualidade.

Acredito que este seja um momento de silêncio, de recolhimento para tentar entender o que está se dando e de juntar forças para que não se perca esse conhecimento e esse outro modo de vida que é tão caro para essas comunidades e que tem tanto a nos ensinar, que talvez nos ajude a sair desse momento tão difícil que estamos vivendo.

Portanto, eu diria que é um momento de um respeito desse silêncio, ainda que, curiosamente, tenham chegado notícias que os sons desses tambores das folias e dos congados têm ressoado para manter essa tradição de vida presente. Afinal, esse conhecimento continuará ecoando e o legado desses mestres não será apagado. Se é verdade que os saberes se consolidam aos poucos, é também verdade que isso acontece de maneira muito sólida de maneira que esses conhecimentos continuaram reverberando como os sons desses tambores que não se calam.