Mais de 650 anos separam a insurgência de Covid-19, no globalizado e secular mundo contemporâneo, do que estudiosos consideram a mais devastadora pandemia registrada na história humana, que recaiu sobre a provincial Europa do século XIV. A distância entre dois mundos aparentemente tão díspares, no entanto, parece reduzida à luz de clássicos da literatura que, em certos aspectos, teimam em não envelhecer.

Em alguns trechos de “Decamerão”, uma coleção de cem novelas escritas pelo italiano Giovanni Boccaccio entre 1348 e 1353, por exemplo, paralelos entre os dois períodos históricos parecem inevitáveis. No capítulo “Primeira Jornada”, antes de mergulhar nas narrativas de um grupo de sete moças e três rapazes que se abrigam em uma vila isolada de Florença para fugir da peste, o autor escreve: “Morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão de gente a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar. Desse modo, como que por necessidade, entre os que sobreviveram, surgiram usos contrários aos primitivos costumes dos cidadãos”.

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Já em “Um Diário do Ano da Peste”, publicado pela primeira vez em 1722, o inglês Daniel Defoe constrói uma narrativa que mistura ficção e jornalismo em um relato inquietante sobre a epidemia de peste bubônica que dizimou cerca de 70.000 vidas em Londres, no ano de 1665. Por vezes, os registros soam atuais, como quando discorre sobre como medo e coragem foram igualmente precoces: “Tal é o temperamento precipitado do nosso povo que, diante do primeiro pavor da epidemia, as pessoas evitavam-se umas às outras e fugiam das casas com medo. Espalhando-se a noção que a doença não era mais tão contagiosa como antes e que contraí-la já não era fatal, o povo adquiriu uma coragem tão precipitada e tornou-se tão despreocupado consigo mesmo que não considerava a peste mais que uma febre comum. Ou nem mesmo isso”.

Outro clássico que vem ocupando rotineiramente a fileira de mais vendidos é “A Peste”, do franco-argelino Albert Camus. Publicado em 1947, o livro é uma alegoria da resistência dos europeus ao avanço do fascismo. A obra também costuma ser lida com um viés existencial, refletindo sobre como o bafo quente da morte afeta o modo como se leva a vida. Esses significados estão imbuídos na história do cotidiano de Oran, uma cidade argelina comum, “até feia”, como descreve o autor. Ocorre que o lugar passa a ser assolado por uma epidemia, que primeiro causa a morte de ratos, enquanto a maioria da população prefere dar continuidade às suas rotinas, como se nada de anormal estivesse acontecendo. “Diante dos sinais, a gente seguir incapaz de juntar as coisas, de mudar os hábitos”, situa Camus. Mas, mais tarde, o bacilo adoece e mata também os cidadãos.