"O Conto das Três Irmãs", produção turca que chega nesta quinta-feira ao streaming (Now e Vivo Play), com o aval de ter sido indicada ao Urso de Ouro da Mostra Competitiva do 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, é um filme que flagra uma situação que, independentemente de cenário, mesmo no século 21 pode ser encontrada esparsa mundo afora - Brasil incluso. As mulheres retratadas na produção não estão encarceradas ao pé da letra, mas indubitavelmente presas, atadas, a uma condição da qual não há nada que possam fazer para mudar - mesmo que uma delas, a mais velha, cogite, à revelia do pai, largar tudo para tentar a vida em Ancara, a capital do citado país, na casa de uma tia.
As três irmãs do título são Reyhan (Cemre Ebüzziya), Nurhan (Ece Yüksel) e Havva (Helin Kandemir), que vivem com o pai, Sevket (Müfit Kayacan), num vilarejo isolado na Anatólia. Na verdade, logo de início, vemos Havva voltando de carro da cidade, e as falas levam o espectador a deduzir que a criança a qual ela havia sido incumbida de tomar conta em uma casa de família faleceu - por isso também o retorno com lágrimas nos olhos. Aqui, citar trechos de uma entrevista do diretor Emin Alper a um períodico italiano, o "CineEuropa", torna-se um recurso necessário para situar o público quanto à trama.
Alper contou à jornalista Marta Balaga que quis retratar uma situação a qual ele próprio vivenciou na infância: na Turquia, muitas famílias ricas "importam" moças (muitas vezes, ainda adolescentes) de regiões pobres do país para tomarem conta de seus filhos. São as chamadas "beslemes". O ato é apresentado para a sociedade como uma forma de caridade - nas palavras de Alper à citada jornalista, tais casais se sentem como "salvadores", por tirarem essas meninas de situações de extrema pobreza.
Nas novas casas, elas, hipoteticamente, passam a ser membros da família, inclusive chamando a genitora do endereço de "mãe". Mas a verdade é bem menos lúdica: são, na verdade, empregadas, babás.
Aqui, vale uma pequena digressão para ponderar que se trata de um fenômeno ainda hoje bastante encontrado no Brasil, onde muitas famílias de classe média trazem meninas do interior de seus estados para fazer as vezes da empregada doméstica, dizendo a si mesmas que estão tirando essas garotas de um futuro sem horizontes.
Voltando à Anatólia, ou melhor, ao filme. Havva, após a vivência da casa da família provisória, se sente desconfortável ao perceber, por exemplo, que, em sua casa "real", as roupas de cama estão imundas, já que lavá-las com mais assiduidade é um luxo por ali, por conta do custo da lenha. Rayhan e o pai contemporizam a queixa da menina, lembrando que tais roupas foram lavadas há dois meses (!).
Logo na sequência, temos mais uma das irmãs de volta ao vilarejo. Trata-se de Nurhan, que, no caso, é devolvida, ao ter deixando a "mãe" contrariada ao ter repreendido um de seus filhos, Ozgur, um menino ao qual, pelos fragmentos de conversas, os pais não estão nem um pouco empenhados em dar rédeas. O senhor Necatti (Kubilay Tunçer), o patrão que a trouxe de volta, é um homem rico e respeitado, e o pai das meninas não sabe mais como se desdobrar em escusas para o comportamento da filha - no caso, ela repreendeu o garoto por fazer xixi na cama.
Na verdade, o espectador logo se dá conta que essa é a segunda filha de Sevket devolvida por Necati. A primeira foi justamente Reyhan, a primogênita, a que sonha em se mudar para Ankara, e que agora está de volta ali, com seu bebê, ao qual ela espera avidamente que não tenha o mesmo destino dos homens ali, ou melhor de todos ali: uma vida na qual a ausência de perspectivas faz com que os dias se repitam interminavelmente, só não sendo iguais por conta das mudanças climáticas - no inverno, por exemplo, as estradas ficam bloqueadas pela neve, deixando todos ali ainda mais presos entre montanhas, como numa areia movediça na qual os esforços para sair resultam debalde. Reyhan está casada com Veysel (Kayhan Açilgöz), outro "local" preso à mediocridade de sua existência.
É nesse cenário que uma tragédia se desenrola - impossível revelar detalhes sem incorrer em spoiler, por isso, fica a cargo do espectador conferir. Por outro lado, o filme mostra um raro momento na vida das três irmãs, que, por uma série de acasos, estão ali, reunidas de novo, ainda que provisoriamente, posto que Havva já tem uma nova casa em vista - e está tão ansiosa para sair dali que decide arrumar as malas antes mesmo do dia previsto para o seu adeus às irmãs e ao pai.
A breve reunião das três, ainda que pequenos atritos eclodam, exala sororidade. A figura do pai, por vezes se junta ao trio. O homem turrão, que se viu sozinho cuidando de três mulheres, às quais sempre chama, ranzinza que só, de "ingratas", vive a contar os mesmos casos, enquanto escorpiões invadem vez ou outra a cena, como a ratificar o perigo iminente.
Fato é que a família está fadada a nunca permanecer unida, a condição social à qual seus membros pertencem jamais permitiria tal "luxo", ainda mais naquele cenário inóspito, no qual o riso só se faz presente com o adicional da surrealidade advinda da única outra personagem feminina além das três irmãs: a senhora aparentemente destituída de racionalidade, ao menos tal qual a denominamos, e que vive de dar cambalhotas sequenciais ao ar livre.
O diretor contou que sim, há um diálogo com "Três Irmãs, de Anton Tchecov (1860-1904), ainda que abordar o tema (das beslemas) já povoasse sua mente há bastante tempo. Portanto, que fique claro, há apenas pontos superficiais de tangência entre o filme do diretor turco à peça escrita pelo dramaturgo russo.
Nesta sua terceira incursão na sétima arte, após "Frenzy", sobre dois irmãos que tentam sobreviver na periferia de Istambul, Alper mostra que, mesmo sem ter o lugar de fala para discorrer sobre o universo feminino, como certamente lembrarão alguns, sabe extrair de seu universo particular a percepção e o tato para abordar com sensibilidade a relação entre três mulheres que vivem à mercê do destino, com pouquíssima margem de manobra. Porque muitas vezes, por mais que a vontade abunde, os limites que a existência impõe são mesmo incontornáveis
Emin Alper nasceu em 1974, em Ermenek, Karaman. Formado em Economia e História na Universidade Bogazici de Istambul, Alper é PhD em História Turca Moderna. Seu primeiro filme, "Beyond the Hill" (2012), recebeu diversos prêmios, incluindo o Caligari Film Prize no Festival de Berlim e o de Melhor Filme no Asia Pacific Awards. Seu segundo filme, "Frenzy" (2015), faturou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza. Além da carreira cinematográfica, Emin Alper ensina história moderna no Departamento de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Técnica de Istambul.
Exibido também no Festival de Sevilha e no Festival de Jerusalém, "O Conto das Três Irmãs", passou, ainda, por diversos outros eventos internacionais, como o Festival de Cinema de Istambul , onde arrebanhou os prêmios de melhor filme, direção, atriz (no caso, compartilhado para as três atrizes que interpretam as irmãs) e trilha sonora. Esteve, ainda, na grade do Festival de Sarajevo, quando saiu vencedor com melhor direção, e no Festival de Bruxelas do Cinema Mediterrâneo, no qual recebeu Prêmio Especial do Júri. No Brasil, foi selecionado para o Festival Itaú Play, em junho deste ano.
O filme é distribuído no Brasil pela Supo Mungam Films.
Título original: "Kız Kardeşler"
Produção: Turquia/Alemanha/Holanda/Grécia, 2019 | 108 minutos
Gênero: Drama
Classificação Indicativa: 14 anos