Havia um tempo em que “nenhum jornalista ficava desempregado”. Quem garante é Ruy Castro, 71, não sem uma dose de gracejo. Embora jamais tenha ido buscar seu diploma do curso de ciências sociais da extinta Faculdade Nacional de Filosofia, o biógrafo mais conhecido do país atua na imprensa desde 1967, com um sucesso fácil de se verificar. Entusiasta da tese de que as melhores biografias são póstumas, o autor de “O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues” (1992) e “Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha” (1995), entre outras, começou a pesquisar há quatro anos a história de uma cidade que, ainda que se encontre no mapa, em sua essência não existe mais: o Rio de Janeiro dos anos 20, quando o lugar era também a capital do Brasil.
“Não pude ouvir muita gente para esse livro porque estão todos mortos. Tive que me basear na bibliografia, consultei quase mil livros e, curiosamente, nenhum sobre a década de 20”, revela.
Tudo porque, ao concluir “A Noite do Meu Bem: A História e as Histórias do Samba-Canção” (2015), seu livro até então mais recente, Castro se deu conta da “quantidade de artistas, intelectuais, políticos e personalidades interessantes que viveram no Rio na mesma época e que nunca tinham sido agrupados em uma narrativa”.
“Fiquei feliz de terem deixado para mim essa tarefa”, diverte-se, e cita, entre seus mais de 40 protagonistas, gente da envergadura de Pixinguinha, Heitor Villa-Lobos, Cecília Meireles, João do Rio, Di Cavalcanti, Procópio Ferreira, Ismael Silva, Manuel Bandeira e Roquette Pinto, “numa lista fantástica e interminável”. “Li muita literatura original da época, as primeiras edições, além de memórias sobre diplomatas, escritores, políticos. Tenho uma biblioteca grande sobre o Rio, com a história sobre a iluminação, os transportes, as grandes obras de engenharia. E li a imprensa daquele período quase que de cabo a rabo, havia uma agitação cultural e jornalística impressionante, com muitos jornais e revistas de ampla oposição ao governo”, observa Castro, explicitando por que, naquele tempo, “jornalista não ficava desempregado”.
Agito
Assim nasceu “Metrópole à Beira-Mar: o Rio Moderno dos Anos 20”, que Castro lança hoje em Belo Horizonte, dentro do projeto Sempre um Papo. A capa do livro traz uma ilustração de J. Carlos (1884-1950), outro expoente do período. Com os traços típicos do desenhista, uma melindrosa posa debaixo de um guarda-sol à beira-mar. “O J. Carlos é praticamente o rosto da época. Ele retratou com um desenho cheio de modernidade, ousadia e beleza a evolução da cidade na atitude das mulheres”, destaca Castro.
A presença feminina, por sinal, é outro ponto de inflexão do livro. “Fiquei bastante surpreendido com a presença de grandes mulheres na cena cultural, que, ao contrário do que se costuma dizer atualmente, não eram perseguidas, mas disputadas pelo mercado, muito bem-pagas e respeitadas”, garante o autor, em referência a escritoras como Gilka Machado, Júlia Lopes de Almeida e Albertina Bertha. Este e outros pontos podem ser vistos como polêmicos. “Descrevo a presença negra na cultura da época em detalhes, com a criação do Teatro Negro, comandado pelo De Chocolat, que foi um grande sucesso comercial. O Rio tinha um mercado grande, adulto, onde cabia todo mundo. Não era uma ação entre amigos”, provoca.
Painel
O escritor define a publicação como “um enorme painel da vida brasileira”. “Por ser metrópole, o Rio recebia pessoas do país inteiro, que traziam as características regionais de Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Paraíba. A soma desses locais foi que enriqueceu a cultura da cidade. A moça carioca aprendeu a ir para a rua e lutar por seus direitos com as filhas dos embaixadores e diplomatas estrangeiros, que, quando vinham, traziam suas famílias”, diz o entrevistado.
Ele, no entanto, afirma que o que mais o interessou foi “o caráter humano”. “São histórias bonitas, tristes, terríveis, dramáticas, comoventes, como a perseguição ao João do Rio e a carreira prisional de vários personagens, como Orestes Barbosa e Patrocínio Filho. Não era só uma questão de estética e destruição de soneto, eles tinham coisas mais importantes a fazer, viveram a convulsão social que se passava no Rio”, afiança.
Heloisa retorna aos contos
Casada com Castro, a escritora Heloisa Seixas também lança seu novo livro nesta terça-feira. Na dobradinha, ela mostra aos leitores “A Noite dos Olhos”, em que retoma o conto, gênero ao qual não se dedicava “pra valer”, como ela diz, desde a estreia, com “Pente de Vênus” (1995), finalista do Prêmio Jabuti.
Nesse ínterim, Heloisa publicou romances. “Fui sendo absorvida por histórias maiores que, quando chegam para a gente, já definem o formato que irão ter”, explica a autora. A nova empreitada reúne 18 textos curtos, que, segundo Heloisa, encontram “coerência ao falarem de suas obsessões”. “Existe uma atmosfera sombria, de mistério, quase sobrenatural. São histórias de pessoas que se defrontam com o desconhecido”, declara.
Em “Alexia”, uma mulher que está indo para uma reunião de trabalho começa a ler tudo em alfabeto cirílico. Em outro conto, uma mulher solitária contrata um garoto de programa para passar a noite de Ano-Novo com ela, mas algo não sai como o planejado.