Um prato de mandioca ralada, uma mão de polvilho, um copo menos um dedo de farinha e outras medidas que não são traduzidas em quantidades específicas. Quase sempre falta também o modo de preparo, porque isso era explicado pessoalmente e guardado na memória. Algumas só se resumiam aos ingredientes, sem muitas instruções, mas sempre davam o crédito para a “dona” da receita, por exemplo, bolo da tia Margarida ou biscoito da avó Edith. Ali, era escrito somente o necessário.
Com o passar do tempo, além da caligrafia impecável, os cadernos de receitas também traziam recortes coletados de revistas e embalagens, como caixas de maisena e lata de leite condensado. Mais do que um acervo de memória afetiva, esses diários gastronômicos são registros sobre ingredientes, épocas e pessoas que resistiram ao tempo. O caderno que Rosilene Campolina, professora do curso de gastronomia da Una e administradora do portal Chef a Chef, tem guardado em casa é um exemplo disso. Ela começou a construir o seu caderno quando se casou, em 1999 – o presente fazia parte do enxoval da noiva.
“Eu não herdei nenhum caderno de família, mas recolhi receitas que foram da minha avó, mãe, irmãs e tias. É uma forma de resgatar gostos, cheiros e temperos familiares”, contou ela que, durante a pandemia do coronavírus, se viu folheando com mais frequência as páginas deixadas como legado.
Em meio a tantas receitas práticas que brotam em um deslizar de dedos no celular, vídeos extremamente explicativos e detalhes que são tesouro para graduar qualquer amante da cozinha, as receitas escritas à mão são registros preciosos de lembranças, memórias e histórias de sua mãe, que morreu em 2010, aos 68 anos. “A inovação só funciona quando não se esquece da tradição, na forma de cozinhar e na preservação dos ingredientes”, acredita.
Veja o vídeo:
Folheando o caderno, a professora aponta a receita do biscoito de polvilho, especialidade da sua mãe, com uma dica escrita por ela: uma pitada de açúcar na massa para não espirrar na gordura quente. Aliás, era comum esses cadernos possuírem avaliações e macetes imprescindíveis na cozinha. “O futuro da cozinha está em nosso passado. Uma receita é igual a uma partitura. Está escrita, mas cada um toca a sua”, acredita.
Continuidade
A estudante Clariane Brandão, 23, também reconhece nos cadernos de receitas a importância dos registros culinários como marcadores de época e foi encorajada pela professora – Rosilene – a manter o legado da família de doceiras reconhecida no interior de Minas Gerais. “O caderno foi herança da minha bisavó, que passou para a minha avó e que agora está comigo. Ele foi escrito na Fazenda da Cachoeira, em Carmo do Rio Claro, no Sul de Minas, em meados de 1942, por várias pessoas importantes na minha vida”, conta ela, que, hoje, reescreve as receitas do caderno, desmembra o modo de preparo e adapta tudo para uma linguagem atual para que não sejam perdidas.
Ela explica que um dos maiores desafios é traduzir as medidas que não existem mais. “É um trabalho de formiguinha”, brinca. “Faço a receita, erro, consulto minha avó e outras tias até acertar”, disse a herdeira, que tenta adaptar o bolo de mandioca da sua tia Margarida, de 93 anos.
O jornalista João Eugênio também mantém o legado da avó, que morreu há dois anos, por meio do livro de receitas. Ao contrário de Clariane, ele não teve a sorte de herdar. “É um objeto muito especial e, quando ela faleceu, todo mundo da família quis. Mas eu consegui tirar fotos do livro inteiro e montei um caderninho com algumas das receitas mais famosas da família e, de alguma maneira, mantemos a memória dela. Sinto que é um pedacinho dela fazendo cada receita”, conta.
Saberes que vão além da cozinha
Além da relação de ingredientes e medidas que não se usam mais, os livros de receitas carregavam registros da época. No da estudante Clariane Brandão, por exemplo, de 1942, a palavra açúcar está grafada com “ss”, e “chícara” no lugar de “xícara”.
Outras surpresas foram descobertas também no livro da Cacá, avó do jornalista João Eugênio, como saberes inusitados. “Tem até uma receita para curar ‘cecê’, feito com angu quente”, conta. No mesmo caderno, João acompanhou de perto o Parkinson da avó. “Pela letra no caderno, acompanhei a evolução da doença dela. No fim, já era bem tremida a grafia”, relembra.
RECEITA: biscoitão de Polvilho da Vovó por Rosilene Campolina
Ingredientes:
2 copos de polvilho doce ou azedo (medida do copo de requeijão) ou 280g
1 copo de óleo (180 ml) pode ser de soja, canola, milho, girassol
4 ovos inteiros (se for caipira, utilize 5 unidades)
Sal (cerca de 8 gramas)
Parmesão ralado e gergelim para polvilhar (opcional)
Modo de preparo:
Bater tudo no liquidificador começando pelos ovos e óleo e por último o polvilho e o sal.
Colocar para assar em forma untada (tipo de bolo com furo central) e assar em forno pre aquecido, a 180 graus por cerca de 20 minutos ou até crescer e corar.
Assim que crescer, abaixar a temperatura pra 150 graus e deixar corar. Se preferir, coloque a massa num saco de confeitar e pingue as pequenas porções num tabuleiro. Se desejar, polvilhe gergelim, queijo ralado, farofa de bacon ou ervas. Deixe esfriar e bom apetite!