Uma corrida contra o relógio. É assim que pode ser descrita a situação atual do único teatro da região Oeste de Belo Horizonte, o Kleber Junqueira, no bairro Calafate. Após diversos reveses, o local pode fechar definitivamente suas portas nos próximos dias. Os gestores do espaço vivem a expectativa de um patrocínio da Cemig, viabilizado por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. O valor captado, de cerca de R$ 1,5 milhão, evitaria a perda de mais um palco na cidade.
Entretanto, a verba ainda não chegou aos cofres do teatro, e isso segue sem previsão de acontecer, o que causa ansiedade nos responsáveis. “A situação é extremamente crítica”, afirma o diretor administrativo do teatro, Éder Junqueira.
Primeiro, enumera ele, foram as dificuldades financeiras causadas pela falta de um patrocinador que deixaram o funcionamento do espaço em suspenso nos últimos dois anos.
Na sequência, no fim de 2019, vieram duas invasões de moradores em situação de rua, que depredaram totalmente o espaço, roubaram equipamentos e causaram um prejuízo de cerca de R$ 250 mil. A grande ameaça agora é a chuva, que destruiu telhas e começa a infiltrar na estrutura do teatro, que funciona em um prédio no estilo art decó, histórico, erguido na década de 40 para abrigar o Cine São José.
O estrago chegou a sensibilizar o poder público. Após uma reunião com o secretário de Estado de Cultura e Turismo, Marcelo Matte, no fim do ano passado, foi acordado o apoio da Cemig, com a contrapartida de que seriam distribuídos 62 mil ingressos gratuitamente. A luz no fim do túnel parecia próxima, mas, por enquanto, segue sendo só uma promessa.
“Não podemos esperar muito mais, temos que fazer uma ação emergencial. Nosso maior temor é que, quando o dinheiro sair, já não exista mais um teatro para ser salvo”, diz Éder.
Ele lamenta as perdas causadas pelos arrombamentos, em setembro e dezembro, que inviabilizaram um retorno imediato das produções. “Estávamos prontos para voltar a operar. Mas roubaram tudo: caixas de som, computadores, mesa de sonoplastia, refletores de iluminação”, enumera. A fiação especial do edifício foi toda arrancada, e até um elevador de carga, usado para içar objetos e atores para o palco, foi carregado pelos criminosos.
A água dos temporais que têm caído na cidade aumenta o prejuízo. “O cimento começou a estufar. É muito preocupante”, avalia Éder, que teme que a água destrua também os 500 assentos do local.
Desabafo
O diretor Kleber Junqueira, fundador do espaço, se emociona ao analisar a situação. “É uma dor indescritível ver assim o projeto de uma vida inteira. É avassalador”, afirma o artista, que se dedica profissionalmente ao teatro há 40 anos.
Para criar o espaço que batizou com seu nome, em 2004, ele tirou dinheiro do próprio bolso e bancou a reforma do antigo cinema, que chegou a abrigar boates, igreja evangélica e depósito de material de construção.
“Eu tinha uma estética de grande porte, que não cabia nos palcos da cidade. A solução foi buscar um espaço próprio. Deixei de ter meu apartamento para investir nesse teatro”, recorda Junqueira.
Ele destaca a importância do palco na formação de público na cidade, com suas ações voltadas principalmente para o público infantil. As peças encenadas no local foram, muitas vezes, o primeiro contato dessas crianças com as artes cênicas.
“Nós já recebemos mais de 500 mil espectadores, a maioria de alunos de escolas públicas, por meio do projeto ‘Teatro para Todos’. É um número muito expressivo”, afirma. “Não existe nenhuma justificativa civilizatória para deixar um espaço assim fechado”, finaliza.
Cemig espera por regularização
Por meio de nota, a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) destacou que é a maior patrocinadora de cultura do Estado, com pouco mais de R$ 30 milhões investidos em 2019, e afirmou que está acompanhando com atenção a situação do teatro Kleber Junqueira. Porém, segundo a estatal, o aporte do patrocínio ainda depende de uma regularização das contas do espaço cultural. “A aprovação de um novo patrocínio ao teatro depende da regularização de pendências de prestação de contas de aportes realizados em anos anteriores”, diz a nota.
Segundo o diretor do teatro, Éder Junqueira, a situação já está sendo regularizada. “Estamos devendo um repasse de 300 ingressos de um espetáculo para a Cemig. Estamos tentando uma reunião para resolver essa questão, mas não temos como apresentar uma peça agora”, destaca ele.
Patrocínio é ponto sensível
Apesar de não viver uma situação tão drástica quanto a do teatro Kleber Junqueira, o Teatro da Cidade virou o ano com a luz de alerta acesa. A casa, comandada pelo dramaturgo Pedro Paulo Cava, perdeu o patrocínio da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM) e agora corre atrás de uma nova empresa para equilibrar seus gastos.
“Vínhamos com uma certa tranquilidade, com três patrocinadores principais e outros três apoiadores. Era o suficiente para manter a casa aberta. Não sobrava nada, dava a conta exata. Mas, no ano passado, perdemos a CBMM e agora estamos tendo que correr atrás para poder sobreviver. É complicado”, desabafa Pedro Paulo Cava, que mantém o patrocínio da Ingleza e da Unimed-BH no espaço.
Na avaliação do dramaturgo, existe hoje o que ele chamou de “demonização” das leis de incentivo, o que tem contribuído para que companhias evitem associar suas marcas a iniciativas artísticas.
“Com a demonização que foi feita em torno da Lei Rouanet, as pessoas vão repetindo esse mantra sem saberem o que estão falando, e muitas empresas recuaram de seus apoios. Estão fechando museus, teatros, casas de cultura no país inteiro, e a tendência é só piorar”, lamenta.
Segundo Cava, ter um apoio institucional é fundamental para a manutenção de espaços culturais, já que os ganhos com a bilheteria costumam cobrir apenas os gastos de cada espetáculo.
“Manter um teatro não é nada fácil. São várias cobranças o mês inteiro, e a bilheteria não cobre isso”, explica o diretor.
Além disso, segundo ele, nos últimos três anos, houve uma queda de público de até 80%. “Foi uma queda muito violenta, no Brasil inteiro. Isso não está permitindo uma sobrevivência tranquila”, afirma. “Vou te dar um exemplo. Entramos na Campanha de Popularização do Teatro e da Dança neste ano com ‘Intimidade Indecente’ com cinco apresentações (a última sessão é hoje). Antigamente, estreava uma peça, e ela ficava dois anos direto”, conta.
Ele aponta diversos fatores que contribuem para essa redução, entre eles a concorrência com as redes sociais e com serviços de streaming, como a Netflix. “Chegou uma geração que não se acostumou a ir ao teatro, não passou por processos de formação de público. A maioria dos nossos espectadores envelheceu, passou dos 60 anos. Para sair de casa, é mais difícil”, afirma.
Para ele, os atuais artistas da capital mineira terão que reabrir uma trilha que atores e diretores percorreram entre os anos 60 e 80, de apresentação do teatro para uma nova plateia.
“Se quiserem fazer teatro no futuro, esses artistas vão ter que repetir o que a minha geração fez: ir às escolas, fazer debates e falar, falar, falar, para voltar a sensibilizar as pessoas. Vão ter que percorrer um caminho que já estava percorrido. Quem sabe assim Belo Horizonte volta a ver um público de 300 mil pessoas por ano que, hoje não tem mais”, sugere.
Preocupação
As dificuldades dos teatros Kleber Junqueira e da Cidade ficam ainda mais alarmantes neste início de ano, já que uma das grandes responsáveis por movimentar os palcos da capital mineira, a Campanha de Popularização do Teatro e da Dança está com mais de 150 espetáculos em cartaz.
Para Rômulo Duque, presidente do Sindicato dos Produtores de Artes Cênicas (Sinparc) – entidade que organiza a campanha –, a situação preocupa bastante. Ele lamenta a falta de políticas públicas claras para a manutenção destes espaços.
“Nunca tem nada muito definido pelos governos para apoiar esses prédios”, diz. Duque elenca os teatros que fecharam nos últimos anos, como o Klauss Vianna, o Clara Nunes e o Imaculada, e reforça que o problema atinge também os palcos públicos.
“O Francisco Nunes, por exemplo, é da Prefeitura de Belo Horizonte e demorou quase dez anos para ser reformado. É uma situação típica de um país em que a cultura não é uma das prioridades”, afirma, citando o espaço dentro do Parque Municipal, que foi reinaugurado em 2014, após passar sete anos interditado pela Defesa Civil por risco de desabamento.
Ele lamenta ainda a desvalorização de propostas como o teatro Kleber Junqueira. “Quando vem alguma iniciativa do tipo, é difícil ter uma resposta do público. A própria cidade não reconhece o esforço. São dificuldades intransponíveis”, afirma Rômulo Duque.
A crítica encontra eco no desabafo do próprio Kleber Junqueira. “Se uma pessoa abre um teatro na Europa, ela é incensada, celebrada. Aqui, eu estou assumindo uma função do Estado, que é de oferecer cultura, e estou apanhando desse jeito”, lamenta o diretor.
Posicionamento
Por meio de nota, a CBMM confirmou o fim do apoio ao Teatro da Cidade. “O patrocínio foi encerrado em agosto de 2019, por uma revisão na estratégia de investimentos da companhia”. A empresa afirmou ainda que mantém o apoio a outras iniciativas culturais, como o Instituto Inhotim, o Museu das Minas e do Metal, a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, o Festival de Cinema de Tiradentes e o Fliaraxá. Ainda segundo a nota, em 2019 foram investidos R$ 19,3 milhões em cultura no Estado pela CBMM.