Escritor premiado e um dos principais nomes da literatura contemporânea, o português Valter Hugo Mãe tem acompanhado com preocupação e frustração as notícias sobre o Brasil, país com o qual mantém uma relação bastante próxima – seus livros têm prestígio de crítica e de público por aqui, e frequentemente ele dá as caras para debates, palestras e participações em festivais literários. “O Brasil vai de absurdo em absurdo”, diz em entrevista por e-mail ao Magazine.
Em Portugal, onde vive, segue sua quarentena depois do susto inicial e só sai de casa “absolutamente para o fundamental”. Nesse período, o escritor tem se dedicado a textos e leituras. “Pude dormir melhor e odiar as manhãs como sempre odiei”, completa.
Nesta terça-feira (9), Valter Hugo Mãe é o convidado de mais uma edição online do projeto Sempre Um Papo, comandado pelo gestor cultural Afonso Borges. O tema do encontro, “A vida como ela é/será”, já guarda em si mesmo muito espaço para ambiguidades, desconfianças, talvez poucas certezas – uma delas, contudo, já habita a cabeça do escritor: “Se alguma coisa vai mudar, vai ser para pior”.
Puxando o assunto para o debate de hoje, você prevê mudanças muito radicais nas relações sociais depois da pandemia?
Não. A menos que para pior. Desde o início venho defendendo que a única coisa que poderá acontecer é uma certa ternura em quem passou por muito medo ou sofrimento, e uma agressividade sequente à pandemia, consequência de seu estrago na economia e até nas condições psicológicas de cada um.
O ser humano já se viu em diversos momentos de colapso, seja econômico, seja social. Será que vamos aprender algo desta vez ou continuaremos a caminhar inconsequentemente, sem pensar nas nossas decisões e posturas?
A humanidade não aprendeu com a pneumônica (ou gripe espanhola) e não aprendeu com o holocausto, não aprendeu com Ghandi nem com Mandela (veja o nojo do racismo regressando), não vai aprender muito com dois meses de confinamento. Em Portugal, chegando agora o verão, existe um clima quase infantil de as pessoas querendo fazer praia. Parece que o segredo para todos os males é ir à praia. Torna-se algo muito lúdico, verdadeiramente infantil. O presidente da República já tem chamado a atenção para a necessidade de encararmos a crise que chega com menos otimismo. Que tempo estranho este, em que o povo precisa de ser chamado a ser menos otimista um bocado, para criarmos prevenção econômica e defesa contra o desemprego, que haverá de aumentar. Se alguma coisa vai mudar, como disse, vai ser para pior, como acontece em todas as vezes que falta dinheiro nas famílias.
Em março, você escreveu uma carta “aos caros amigos do Brasil” demonstrando preocupação a respeito da tomada de consciência sobre a Covid-19. Hoje, somos o terceiro país com mais mortes pela doença no mundo. Por que chegamos a essa situação? Se você fosse escrever uma carta novamente, agora, o que diria ao povo brasileiro?
Nem sei. Estou tão frustrado com o rumo do Brasil desde o golpe que fizeram a Dilma. O Brasil vai de absurdo em absurdo. Volta a ser notícia pelos piores motivos, outra vez regredindo gravemente nos elementares direitos humanos, regredindo na afirmação democrática. Vocês estão num regime pró-ditadura, uma coisa aberrante para o século XXI. Parece o pior das regiões mais atrasadas do mundo, como o pior de África. E, ao fim de 200 anos de independência, culpar os portugueses já não funciona. Gostaria eu de culpar meu sexto avô por minhas falhas de cidadania, mas não creio que serviria de nada perante qualquer tribunal ou mesa de voto. O Brasil já era o país do século XXI, aquele que mais se desenvolvia e que o mundo inteiro queria como parceiro, todos os emigrantes estavam de volta, todos os estrangeiros visitavam. Agora, recuou tudo. As pessoas saem daí aflitas, e as pessoas ficam aí aflitas. Ninguém está bem. E matam crianças até dentro de suas próprias casas, e agora vão deixar morrer muito mais pessoas sem assistência ao surto pandêmico. Os países com menos mortos são os que agiram de imediato, confinando e criando políticas de apoio financeiro pela suspensão laboral. Pense bem, em impostos cada cidadão entrega ao Estado cerca de sete a oito meses de seu salário. Com todos os impostos e taxas consideradas, você divide com o Estado mais de metade do seu vencimento anual, e isso por toda a vida. Subitamente, há uma pandemia que periga sua sobrevivência, e você não consegue que o Estado te retribua por dois meses de confinamento e suspensão de trabalho. Então, você não tem verdadeiramente um Estado.
Por quê?
Porque ele não te garantiu saúde, não te garantiu alimento, não garante nem segurança. É um embuste. Estado precisa ser seu aliado, porque cidadão nenhum pode ser excluído ou deixado à sorte. O Estado é seu sócio majoritário. Ele leva a maior parte de todo o seu vencimento. O mínimo que pode fazer é garantir que você não passe fome, não morra, porque ele justamente vive com o seu dinheiro. Não fará mais do que a sua obrigação.
Como tem sido sua rotina em dias de confinamento em Portugal?
Sou um privilegiado. O meu trabalho foi sempre em casa. Estou habituado ao tamanho da casa (por sinal, bem pequena, lamento hoje não ter um espaço exterior, um pequeno jardim ou quintal), e estou habituado a gerir meu trabalho sozinho, sem colegas nem patrões. Eu próprio defino meus objetivos e persigo minhas necessidades. Assim, depois do susto inicial, com certa aprendizagem para lidar com a iminência do vírus, adquiri alguma normalidade, ficando quieto o mais possível, saindo de casa absolutamente para o fundamental. Estive períodos de 30 dias sem sair. Não foi difícil. Foi até bom. Pude dedicar-me aos meus textos e a algumas leituras, pude dormir melhor e odiar as manhãs como sempre odiei. Julgo que o grande desafio para uma disciplina destas é o de sermos capazes de nos suportarmos. Com muita crítica, suporto bem quem sou. Vivo de arte e uma sopa.
Em que medida transitar entre a literatura (romance, contos, infantil e poesia) e a música – Valter teve letras musicadas por bandas portuguesas de rock alternativo e já integrou um grupo chamado Governo – ajuda seu processo criativo e a aliviar a tensão em períodos caóticos?
A arte é imitação de companhia. Quando você lê Machado de Assis, você imita a companhia de Machado de Assis. Transpondo espaço e tempo, a arte abeira pessoas. Perante todas as solidões e toda a desordem, as expressões literárias ou musicais, o cinema ou a pintura, são modos de resistência ao desumano. Mantêm-nos humanos, em conversa com nossos valores, lembrados de nosso sentido comum, plural, de estarmos aqui para os outros, pelos outros. Ler um livro é impedir a desumanização. Observar um quadro é impedir a desumanização. Mais do que ajudar, é uma prova de que você não reduziu à condição de bicho.
Programe-se
Intitulado #SempreUmPapoEmCasa, o encontro virtual entre o escritor português Valter Hugo Mãe e o criador do Sempre Um Papo, o gestor cultural e escritor Afonso Borges, será transmitido ao vivo, às 19h, no canal do projeto no YouTube.