Cinquenta e um anos. Foi com essa idade que Eliana de Jesus dos Santos Pereira se formou, neste ano, em Pedagogia. Mãe de três filhos, ela viu o sonho do diploma de faculdade ser adiado em diversas etapas da vida, quando precisou abdicar dos estudos e da própria carreira para se dedicar quase integralmente aos filhos, à casa e ao marido.

Em julho, ela conquistou o diploma de Pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) e, na maturidade, se viu realizada. “Era um sonho sair de casa e falar: gente, estou indo para a faculdade! Eu achava chique pegar a bolsa e alguém perguntar ‘para onde você está indo?’, e eu responder: para a faculdade”, relata Eliana. 

Esperar os filhos crescerem para realizar os sonhos somente após os 50 anos não é a realidade somente de Eliana, mas também de milhões de mulheres no Brasil e no mundo. Estima-se que, apenas por serem do sexo feminino, elas dedicam 11 horas semanais a mais que os homens aos trabalhos domésticos e aos cuidados não remunerados, conforme  estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado em setembro. 

Esses cuidados domésticos são chamados de tarefas invisíveis, que, apesar do nome, provocam grande impacto social e cultural. O assunto foi, inclusive, tema da redação do Enem 2023, que abordou os "desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. 

Enquanto homens são culturalmente incentivados a crescer profissionalmente, as mulheres muitas vezes são impedidas de ampliar os estudos ou subir degraus na carreira por conta da jornada dupla - conciliam o trabalho remunerado com o cuidado de filhos, além das tarefas domésticas. A pesquisadora Claudia Goldin, vencedora do Nobel de Economia neste ano, verificou que a principal hipótese para a disparidade salarial entre gêneros está na maternidade. 

Yumi Garcia dos Santos, professora do departamento de sociologia e do programa de pós-graduação em Sociologia da UFMG, explica que essa diferença de gênero está enraizada nas culturas. “A gente, na sociologia, chama de divisão sexual do trabalho. Isso é ensinado desde a infância. É uma distribuição das tarefas de maneira que as domésticas se concentram nas meninas, e é bastante naturalizado. Às vezes nem muito pensado, porque é passado de geração em geração. A mãe recebeu essa educação”, analisa.

A especialista explica que essas diferenças refletem no dia a dia das mulheres em diversas nuances. Enquanto os homens se preocupam em sair para trabalhar ou estudar, as mulheres se dedicam a todo o resto. “Para que os membros da família possam comer, se vestir, cuidar da higiene para poder trabalhar no dia seguinte ou ter suas atividades como estudante sem problemas, tem alguém que fica cuidando disso”, diz.

Sonho adiado mais de uma vez

Aos 18 anos, trabalhando em uma escola, Eliana de Jesus se apaixonou pela profissão de professora. Mas ao engravidar do primeiro filho, ela teve de parar de frequentar as aulas do ensino médio e deixar para depois o sonho de seguir carreira como educadora. 

Quando o filho completou dez anos, Eliana, aos 28, voltou a estudar. Foi nessa época que ela terminou o ensino médio e engravidou do segundo filho. “Lembro que eu estava com um barrigão e tinha que subir o morro para terminar os estudos. Nessa época, eu não era casada, morava com a minha mãe e tinha que trabalhar”, conta.

Aos 39, a professora se casou e engravidou do terceiro filho, uma menina com Síndrome de Down. “E aí foi uma luta, né? Porque eu tinha que trabalhar, cuidar dela, cuidar do marido…. na época, meu marido tinha um processo, esse processo veio à tona e ele foi preso. Eu tinha que trabalhar, estudar, cuidar da casa e cuidar dele no presídio, durante uns três anos”, detalha.

Nessa época, ela passou em um concurso público, mas continuou tendo de adiar a tão sonhada graduação. “Eu tinha necessidade de fazer faculdade. Além de o salário aumentar, a prefeitura deu para alguns professores um prazo para terminarem a faculdade”, conta, lembrando que, no serviço público, graduações e especializações contam muito para aumento do salário. Tempos depois, ela passou em mais um concurso, também de nível médio. “Eu agora tinha dois concursos públicos e nenhuma graduação”, lamenta.

Eliana se formou em Pedagogia aos 51 anos

Hoje, graduada, a pedagoga faz sua primeira pós-graduação em educação, com ênfase em inclusão social - inspirada pela filha mais nova. A primeira pós, claro, pois o objetivo da professora não é parar por aí. “Eu posso fazer cinco pós-graduações para aumentar meu salário. Eu vou fazer as cinco. E depois quero fazer mestrado”, conta.

Motoclube aos 60

Maristela Aparecida de Assis, 61, também tem uma história de sonhos e carreira adiados para cuidar dos filhos. Ela começou a trabalhar aos 19 anos como telefonista contratada na Câmara Municipal de Belo Horizonte e, anos depois, passou em um concurso interno na Casa. “Meu salário era muito baixo, não dava para estudar e manter as coisas que eu gostava. Apesar de o meu marido ter, na época, uma situação financeira mais ou menos, a gente não tinha tanta condição”, conta.

Ao longo do tempo, Maristela teve três filhos: aos 22, aos 27 e aos 32 anos. Somente quando o mais novo já estava com cerca de oito anos, e ela com 40, é que voltou a pensar nos estudos. Maristela fez supletivo para finalizar o ensino médio e, incentivada por uma colega de trabalho, iniciou a faculdade aos 42 anos, o que a ajudaria a subir de cargo e ganhar um salário melhor. “Era uma luta porque os meus filhos também estudavam e a gente dividia o tempo. Nessa época, eu tinha me separado, então estava sozinha com os meus três filhos. Estava muito difícil para mim, mas mesmo assim eu fui à luta e consegui me formar.”

“Eu não tinha condições, não tinha tempo porque eu trabalhava em um período grande. Eu precisava cuidar da casa, precisava levar para escola, então, eu fui deixando passar, né?”, lembra. “Quando eles já estavam numa idade que dava para ficarem em casa sozinhos, eu fui fazer a faculdade e acho que foi um pulo na minha vida. Isso me deu uma condição para me aposentar em um cargo melhor”, relata. Graduada em Recursos Humanos, Maristela conseguiu um cargo de chefia na Câmara, fez uma pós-graduação em Pedagogia Empresarial e se aposentou aos 53 anos.

Aposentada e com filhos criados, Maristela viu a oportunidade de finalmente fazer algo que lhe desse prazer. Aos 54, ela descobriu uma nova paixão: motos. E, ao lado do irmão, fundou um moto clube. “Eu precisava ter uma carteira de moto, só que eu tenho duas cirurgias de coluna. Então, minha médica falou: de jeito nenhum! Você não tem condições de pilotar! Você tem oito parafusos na coluna e é muito arriscado!”, lembra.

Maristela montou um motoclube depois de aposentada

Teimosa, Maristela fez questão de fazer autoescola e tirar a habilitação categoria A aos 58 anos. Apesar de não usá-la na prática, ela acompanha a turma do moto clube em viagens, como carro de apoio. “Eu levo a motociclista grávida, eu levo o filho da motociclista, eu levo as bagagens, as mochilas de acampamento, a churrasqueira. E, aí, assim, a gente curte demais!”, conta.

“A gente viaja para várias cidades de Minas Gerais. Nós vamos para Curvelo, para Carandaí, todas essas cidadezinhas próximas à Grande BH”, diz. Além dos passeios em cima da moto, o grupo viaja ainda de férias, em ônibus fretado, em excursão, e promove eventos. “A gente faz o carnaval do moto clube, nós temos um bloquinho que chama ‘Motoqueiro é a mãe’”, cita. “Esse motoclube é a minha vida. Eu amo de paixão!”

Homens não passam por renúncias

De acordo com a pesquisa Ipea, intitulada “Gênero é o que importa: determinantes do trabalho doméstico não remunerado no Brasil”, citada no início desta matéria, diferente das mulheres com histórias como Eliana e Maristela, os homens são muito menos afetados por transformações ao longo do curso da vida.

Enquanto para elas o casamento pode aumentar significativamente o tempo gasto com as tarefas domésticas e outros cuidados não pagos, para eles o efeito é negativo ou inexistente. Tornar-se mãe significa para a mulher gastar o dobro do tempo nesse trabalho, que é invisibilizado, em comparação à variação verificada no caso dos homens que se tornam pais. 

Cada criança de até 3 anos de idade, por exemplo, amplia o tempo em cuidados não pagos dos homens em 2,5 horas por semana; enquanto para as mulheres, essa ampliação é de 5 horas. E, enquanto filhos adolescentes do sexo masculino não produzem efeitos significativos na jornada da mulher, filhas entre 15 e 18 anos podem encurtar o trabalho doméstico das mães. 

Cuidar de pessoas idosas também aumenta a carga de trabalho na esfera doméstica das mulheres, mas não tem efeito para os homens. E até quando elas respondem pelo sustento financeiro da casa, continuam sendo responsáveis pela maior parte do trabalho doméstico. 

Segundo a professora de Sociologia Yumi Garcia dos Santos, a mulher assume o papel de base, de apoio para todos os integrantes da família. “Tem alguém que está fazendo compras, tem alguém que está pensando no banho, na roupa para lavar e passar, recolher do varal, dobrar… É a mulher que assume esse papel de cuidar de tudo e de administrar”.

“O homem também faz, mas é aquela de ‘eu participo, eu ajudo’. É ajuda, então é sempre menor. É uma responsabilização maior para as mulheres, e isso não é só nesses arranjos privados entre casais ou família, mas até em termos de políticas públicas isso acontece”, comenta, lembrando que o programa Bolsa Família, por exemplo, atribui às mães a responsabilidade de sacar o dinheiro e administrar os estudos do filho.

E uma das consequências dessa cultura de desigualdade, além do adiamento de sonhos, segundo Yumi, está na perda da independência, em muitos casos. “Dedicar-se a essas tarefas faz com que a independência econômica também seja adiada, e isso faz com que a mulher seja dependente do parceiro, do marido”, diz. 

Sonho do filho em primeiro lugar

Tendo de adiar seus próprios sonhos, é comum que mulheres encontrem a felicidade nas realizações dos filhos. É o caso de Elza Moura Patrício Paixão, 60, que viu o filho se formar no ano passado, aos 25 anos.  “A coisa mais maravilhosa da minha vida foi ver o sorriso no rosto dele. Foi mais gratificante ainda! Quer dizer, valeu a pena todos esses anos que eu dediquei para ele, para o estudo dele. Valeu muito a pena!”, vibra. “Não me arrependo nem um pouco de nada que eu deixei de fazer para ele estudar”, diz.

Elza na formatura do filho

Com o principal objetivo cumprido, Elza agora quer ampliar horizontes. “Eu fiz ensino médio. Eu queria ter feito uma faculdade de Psicologia, mas na época eu não fiz porque era só eu, minhas irmãs e minha mãe. Não tinha como eu estudar. Aí, casei, tive filho, e a faculdade foi ficando para trás”, conta.

Elza trabalha em uma escola e se vê em novos projetos empreendedores, como vender açaí na Feira Comunitária do bairro Coqueiros. “Minha irmã sempre trabalhou com feira, e eu via aquela agitação toda dela com as coisas, levando pra lá e pra cá. Eu achava aquilo bacana, um jeito de preencher seu tempo sua cabeça, preocupar com aquilo e deixar os problemas de lado. Não é só pelo dinheiro, é pelo seu bem estar, fazendo uma coisa que você gosta”, diz. “Me dá prazer fazer isso. Eu gosto muito! É algo que me tira do meu dia a dia, me tira dos problemas”, declara Elza, que tem o desejo de fazer um curso de corte e costura. 

O que pode ser feito?

Na visão da professora Yumi Garcia, é possível reverter a cultura que responsabiliza unicamente as mulheres pelos cuidados. “Muita coisa está mudando, até em termos de envolvimento dos homens nas tarefas domésticas, nas tarefas de cuidado. Os homens desta geração têm se envolvido mais do que os homens de uma geração mais antiga”.

A socióloga acredita que, apesar de possível, essa mudança só virá com a educação de toda a sociedade. “Se não envolver os homens na tarefa do cuidado, esse desequilíbrio vai simplesmente reproduzir a desigualdade de gênero. Então, políticas públicas são para isso. Estão aí para para mudar, mas não mudar de maneira irresponsável, tem que ser discutido. Eu acho que é importante esse papel do cuidado para as mulheres, mas não pode ser só das mulheres”, opina.

Por fim, Yumi lembra que o principal ponto a se mudar é a responsabilização da mulher para tudo que envolva os filhos. Para ela, a responsabilidade precisa ser equilibrada com o parceiro. Além disso, às mulheres que abdicaram de muitos sonhos e desejos profissionais durante a vida para que pudessem cuidar dos filhos, Yumi orienta: “elas não precisam esperar os filhos crescerem para estudar, as mulheres têm o direito à educação.”