Bastou um anúncio dA Pão de Queijaria sobre a abertura da nova unidade na Pampulha, em Belo Horizonte, para que o post fosse tomado por pedidos para que o estabelecimento fosse seguro para celíacos, pessoas com uma doença autoimune causada pela intolerância ao glúten, proteína encontrada no trigo, aveia, cevada, centeio e seus derivados. Com a base de polvilho em sua receita original, o pão de queijo da casa seria um forte candidato a glúten free, se não fosse o risco de contaminação cruzada com outros alimentos. Faltam em Belo Horizonte estabelecimentos que atendam a esse público, mas os que existem cativam clientes fiéis e veem seu faturamento aumentar.
“No primeiro ano de diagnóstico fui lá [nA Pão de Queijaria] e disse ‘vocês estão literalmente com a faca e o queijo na mão, são poucas adaptações que precisam fazer’”, lembra Sílvia Borela, de 34 anos, microinfluenciadora digital, que descobriu a doença há oito anos. Lucas Parizzi, um dos sócios do empreendimento, disse que a empresa vê com bons olhos essa demanda e que estudaria “com carinho o que a legislação determina para serem ‘seguros’ para celíacos”.
Sílvia é uma entre os 2 milhões de brasileiros que têm essa condição, segundo dados da Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil (Fenacelbra). Segundo Ângela Diniz, presidente da Associação de Celíacos de Minas Gerais (Acelbra-MG), não há dados estatísticos exatos devido à falta de diagnóstico, mas estima-se que 1% da população mundial tem a doença.
Durante o Maio Verde, mês de conscientização da doença, a Fenacelbra está com a campanha ‘Eu sou, eu conto, você é, você conta’, sobre a importância do registro de pessoas celíacas. “A importância do cadastramento é justamente fazer prevalência de quantos somos, onde e como estão os celíacos de cada Estado. Um dado estatístico atualizado facilita na construção de políticas públicas, ações estaduais e até amparo para aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade. Pensando, por exemplo, nos celíacos do RS. É uma alimentação que exige cuidados e os alimentos industrializados têm alto custo”, lembra Ângela.
Brasil é o maior mercado glúten free da América do Sul
Diante de um número expressivo de celíacos, que deve ser ainda maior devido à subnotificação, o Brasil já representa hoje o maior mercado e de mais rápido crescimento no segmento de alimentos e bebidas sem glúten na América do Sul. O país conquistou uma participação estimada de mais de 50% no segmento já em 2017. Os dados são da Mordor Intelligence, especializada em pesquisas.
Segundo a empresa, a mudança na tendência de consumo alimentar dos consumidores e na inclinação para um estilo de vida mais saudável tem impulsionado os negócios glúten free. A projeção é que o mercado brasileiro de alimentos e bebidas sem glúten deverá registrar uma taxa de crescimento anual composta (CAGR) de 10,7% durante o período de previsão 2020-2025. O CAGR é uma métrica útil para avaliar o desempenho de um investimento ao longo de um período específico.
Foi justamente em busca de uma alimentação low carb para si próprio, que há quatro anos o empresário Cleber Luciano Tavares, de 51 anos, sócio-proprietário da Wanted Burguer, de BH, acabou “esbarrando” em um fornecedor de pães sem glúten. Ele testou, gostou e resolveu colocar no cardápio de suas lojas nos bairros Palmeiras, na região Oeste, e no Luxemburgo, no Centro-Sul da capital. “Já havia procura de clientes que pediam para mandar hambúrguer e colocavam na observação ‘sem pão’ e isso me intrigava”, lembra Cleber.
Muitos desses clientes passaram então a pedir o hambúrguer low carb. Uma delas, porém, que também era celíaca, questionou Cleber como o produto era feito. Foi só aí que ele começou a procurar informação sobre a doença e descobriu uma série de cuidados e protocolos que deveriam existir para evitar a contaminação cruzada com outros alimentos.
Com investimentos de R$ 3,5 mil, Cleber resolveu bancar toda a mudança que precisaria ser feita na cozinha para atender o público celíaco. Além de mudar o layout, ele comprou talheres, vasilhames e uma bancada exclusiva para a montagem das opções glúten free. Além disso, hoje, o único profissional da equipe que monta os hambúrgueres low carb é o que trabalha na chapa, onde não vai nada com glúten. Novas fritadeiras foram compradas e a de batata passou a ser exclusiva: não vai nenhum empanado, devido ao risco na utilização da farinha. Os ingredientes comuns a todos os pratos, como alface e tomate, também passaram a ficar separados.
Ao criar os hambúrgueres sem glúten, Cleber também preferiu não colocar molhos diversos na montagem dos sanduíches. O de picanha vai apenas com cebola roxa e chimichurri, mais caro, mas com garantia que é livre de contaminações. “Tem tempero, a granel, que não tem garantia nenhuma que não tenha glúten. Tem que ser embalado, envasado, com garantia”, explica Cleber.
Além de todo esse cuidado na hora do preparo, de se resguardar em relação aos seus fornecedores e treinar a equipe, o empresário já pagava uma agência de segurança alimentar privada para auditar suas unidades mensalmente. A profissional confere desde o controle de temperatura dos freezers, até a separação dos ingredientes, etiquetação dos molhos, limpeza de gordura e avaliação de postos de trabalho. Sabendo que as lojas agora oferecem alimentos para celíacos, a análise também é feita neste sentido, observando, por exemplo, o mínimo de distância que deve existir entre as fritadeiras de empanados e a de batata. “Nós estamos há quatro anos [desde o início] sem problema de contaminação cruzada ou algum relato de que alguém passou mal pelo hambúrguer”, conta o empresário.
Hambúrgueres sem glúten representam 20% do volume de vendas da Wanted
Hambúrgueres sem glúten representam 20% do volume de vendas da Wanted
Bancar o título de ‘local seguro para pessoas celíacas’ acabou trazendo vantagens para a Wanted Burguer. O empresário revela que as vendas do Burger Low Carb e o Low Carb Picanha começaram com um volume pequeno, mas hoje já representam um percentual significativo, de 20% do total. “Achei que era um mercado pequeno, mas descobri que tem um volume significativo de vendas. O público que abraçou a gente é fiel, sempre divulga”, conta.
A participação das opções para celíacos no faturamento da casa deve ser um pouco maior, visto que os hambúrgueres são mais caros: o low carb é vendido a R$ 41 e o low carb picanha a R$ 46, porque tem carne de 170g. No cardápio, há hambúrgueres entre R$ 23 e R$ 41. A casa também passou a oferecer cortes de carne e uma sobremesa glúten free.
Feito com farinha de amêndoa, linhaça dourada e sal rosa, o preço de custo de um pão sem glúten é de R$ 9, enquanto o convencional fica entre R$ 1,50 e R$ 1,80. Apesar deste valor mais elevado e de não serem os hambúrgueres mais lucrativos no menu, Cleber explica que a opção para celíacos é “agregadora”. “Como as pessoas não tem muita opção, acabam atraindo outras para cá. Vai comemorar aniversário, marca aqui, porque vai poder comer. [...] Eu vendo oito hambúrgueres, um só celíaco. A venda dos outros sete foi por causa dele. Trouxe sete clientes pra gente”, explica Cleber.
Famílias inteiras, grupo de amigos, jovens de igreja e até casais acabam escolhendo a hamburgueria porque ela atende os dois públicos: pessoas com e sem restrição alimentar. A Wanted já foi cenário de chá revelação e até pedido de casamento. “É um diferencial. Já tive cliente que me chamou na mesa, com olhos cheios d’água, porque tinha dez anos que não comia hambúrguer. É gratificante. É muito mais do que comércio. As pessoas querem estar junto das outras, querem participar de momentos felizes”, afirma Cleber.
Influenciadora Sílvia Borela descobriu que era celíaca há 8 anos. Foto: João Godinho/O Tempo
Rotina de celíaco exige grande adaptação
Até chegar ao seu diagnóstico, a influenciadora Sílvia Borela ficou dois anos sentindo muitas dores abdominais fortíssimas. “Dependendo do que eu comia, assim que eu voltava para o trabalho de tarde, a minha calça já não fechava. Eu parecia grávida mesmo, sabe? De cinco meses… Era uma distensão abdominal abrupta. Era bem assustador”, lembra. Depois de tirar o glúten, vários males que ela achava que eram normais, sumiram, como uma insistente rinite.
A adesão à nova dieta acabou sendo rápida para evitar mais sofrimentos, mas logo ela percebeu que não seria uma rotina fácil. “Comecei a olhar no supermercado. Até Trident e Nescau tinham glúten. A gente acha que é só o que tem farinha de trigo, mas não. Várias coisas que tem glúten a gente nem imagina”, diz.
Com a ajuda de uma nutricionista, ela foi aprendendo a comer melhor e repondo vitaminas que estavam baixas devido a problemas no intestino. Morando com os pais, em casa ela tentou separar o preparo de suas comidas, mas logo percebeu que se tornaria estressante demais. “Meus pais fazem dieta solidária, porque tem problema da contaminação cruzada”, explica.
Diante dos preços elevados dos produtos glúten free, uma forma mais econômica de Sílvia lidar com a nova realidade foi dar preferência à “comida de verdade”. Os pães, que sem glúten custam na faixa dos R$ 20, foram trocados por ovos ou produção caseira. “Fica inviável ficar substituindo tudo. [...] Falo sempre que celíaco que não cozinha, tem coisas que nunca mais vai comer na vida. A gente faz bolo toda semana”, explica.
Fora de casa, nem mesmo salada num self-service ela se arrisca, já que não sabe como a comida foi manipulada. “Já passei mal demais. Nosso maior problema é a contaminação cruzada. Os traços [de glúten] realmente fazem mal. Toda vez que saio de casa e vou num lugar é uma série de perguntas e depender da boa vontade”, conta. Na nova rotina como celíaca ela adotou a marmita com sua melhor amiga.
Atualmente, ela conta que não sai muito à noite, e lamenta que o único bar onde podia comer porção de carne com batata sem medo de passar mal, o Tiquê, na Savassi, em BH, fechou. Após quatro anos de funcionamento, a casa anunciou o encerramento das atividades em março.
“Já tive oportunidade de ir à Itália e há uma associação que treina restaurantes. Lá tem muito diagnóstico. Eles têm áreas separadas e, às vezes, a comida vem em pratos de cor diferente. Os funcionários são bem treinados. Fui no mesmo restaurante da minha família e não passei mal. Eles têm protocolos muito bem definidos”, lembra.
Para Silvia, é preciso uma maior divulgação sobre a doença no país para que haja mais produtos no mercado voltados para os celíacos.
Se não tratada, doença pode levar até ao câncer
A nutricionista Lívia Maciel Peres, celíaca e que faz parte da diretoria da Acelbra-MG, explica que a doença celíaca é autoimune e não tem cura, mas há um único tratamento: a retirada do glúten da dieta. Segundo ela, a doença leva o sistema imunológico a atacar os órgãos, principalmente o intestino, mas acontece no corpo todo, afetando também a parte endócrina, como os ovários e a tireoide. “Mesmo um pouquinho faz mal. Toda vez que a gente tem contato com o glúten, nosso sistema imunológico reage”, diz.
A nutricionista explica que a doença se apresenta em três formas, a clássica, com episódios de diarreia, a não clássica, que leva a um quadro de intestino preso e a assintomática, que as pessoas costumam descobrir porque têm parentes celíacos ou durante algum exame.
A condição, se não tratada, pode levar a sérios problemas de saúde, como gastrite, anemia, diabetes, aborto de repetição e até câncer de intestino. “Tem gente que descobre quando está idoso, com 60 anos. E aí já tem três doenças autoimunes”, diz Lívia.
Segundo a nutricionista, a doença celíaca tem um fator genético e pode ou não ser hereditária. “Todo mundo que é parente de celíaco, é importante fazer exames”, diz. Ela alerta que o teste deve ser feito antes de excluir o glúten da alimentação para não tornar o rastreamento difícil.
O diagnóstico pode ser obtido por meio de um exame de sangue e endoscopia com biópsia do duodeno, e ambos são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).