Nos altos territórios da macroeconomia, o Plano Real significou contenção da inflação, aumento de juros e margem para a política econômica do país voltar os olhos para outras questões, como o combate à desigualdade social. No dia a dia, tudo isso era traduzido no carrinho do supermercado.
“Depois que a inflação estava sob controle, a parte da sociedade com renda mais baixa começou a ter acesso a mais alimentos e a serviços que ela não tinha no passado. Teve uma piada na época do governo Fernando Henrique Cardoso de que os pobres passaram a consumir frango e iogurte, que eram dois itens que eles não conseguiam comprar anteriormente”, exemplifica o professor de economia do Ibmec Hélio Berni. Isso ocorreu a partir do momento em que o poder de compra da população deixou de ser corroído pela inflação, dando mais estabilidade e previsibilidade para os brasileiros.
A inflação (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) acumulada desde 1994, ano de implantação do plano, foi de 708%. Ao mesmo tempo, o salário mínimo subiu de R$ 64,79 para R$ 1.420, o equivalente a uma alta de 2.091%. Ou seja, o salário subiu quase três vezes a mais do que a inflação em 30 anos.
Além de o frango e o iogurte terem se tornado ícones da virada de momento econômico, outros desejos antes inacessíveis a camadas mais pobres da população entraram na lista de conquistas. “Antes, não havia cartão de crédito, o que dificultava a compra de itens como fogão, geladeira, televisão. O crediário surgiu muito forte nesse período, porque proporcionava as compras à população. Na época, havia consórcios também. Hoje, é piada pensar que a ostentação da época era um consórcio de videocassete, em que você esperava ser contemplado um dia para alugar um filme”, explica a economista e professora de MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV) Carla Beni.
“O que era essa vida antes do Plano Real? Era uma vida de total falta de confiança na nossa moeda. Todo departamento pessoal tinha duas folhas de pagamento, porque precisava fazer adiantamento salarial. Quanto mais baixa a renda fosse, no dia em que a pessoa recebia o salário, tinha que ir ao supermercado e comprar tudo em comida, o que acabava aumentando o processo de inflação”, reflete Carla.
‘Bolo de dinheiro’
Nos anos 1990, o representante comercial Antônio Carlos Souza Pinto, 55, recebia o salário em espécie – as notas eram guardadas em um envelope que, na época do cruzeiro, era volumoso. “Vinha um pacote bem grande. A gente não sabia nem o que ganhava”, conta. Isso não significava que o salário era alto, mas sim que eram necessárias muitas cédulas para comprar praticamente qualquer coisa nessa época de hiperinflação. Chegou o real, zeros foram cortados da moeda, e o envelope de Antônio Carlos e de incontáveis outros trabalhadores diminuiu.
Na “década perdida”, etiquetar preço era posto de trabalho
Não só os salários, como também o mundo do trabalho mudou com o Plano Real. Funções essenciais daquela época, como a frenética etiquetagem de preços, desapareceram. O equipamento que fazia um som característico, um “tec-tec-tec” inesquecível para uma parte dos que viveram naquele tempo, era manuseado por trabalhadores como Willian Melo, 59.
Ele se formou técnico em mecânica, aos 18 anos, no começo dos anos 1980, momento de forte retração industrial no Brasil, em que portas de possíveis trabalhos se fecharam para ele. “É a famosa década perdida”, lamenta.
Ele finalmente conseguiu trabalho, tornando-se a pessoa responsável por etiquetar preços nos comércios. “Você tinha que ir ao supermercado, pegar aquelas caixas de sabonete, por exemplo, e sair remarcando os preços”, rememora. Só depois de 1994 Willian pôde respirar com algum alívio e crescer na área de formação.